quinta-feira, janeiro 03, 2013

Pensão Nápoles


Desde que aportou a Curitiba, Chico viveu às margens do rio Belém, sempre nas unhas o barro amarelo. Para ser feliz deveria, menino, ter pescado lambari de rabo vermelho. Sonhava fugir para outra cidade — ah, Nápoles!
Escriturário, noivo, bigodinho, morou em todas as pensões: Primavera, Floriano, Bagdá. Definhava ora na sórdida espelunca de nome pomposo, ora na salinha escura do escritório, a espirrar entre o pó dos papéis. Eterna promessa de aumentarem o salário ano seguinte — não podia esperar mais um ano. Perseguia o vôo das moscas, contava as rugas na testa do gerente, errava as contas e, ao receber a correspondência, indagava do carteiro:
— Alguma carta de Nápoles? Sabia o que era — o chamado das janelas. Em vez de partir, mudava de emprego, noiva, pensão. Respondia ao primeiro anúncio de "Precisa-se moço lugar de futuro". O futuro? Outra rua de Curitiba, plátanos antigos na calçada, solteironas à janela, rio Belém dos quintais miseráveis, os moleques atrás do lambari de rabo vermelho.
A salvação era casar, escapulir para o outro lado da cidade, onde a água do rio não chegasse — com as chuvas alagava os quintais, cobria os sapatos de lama, os sapos coaxavam na cozinha. Irrompia, sem aviso, sob os pés; dos amantes distraídos. A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, não fora o Belém, com que água as mães dariam nos piás o banho de sábado?
Trinta anos, magrinho, bigode preto, Chico fugia do rio. Era moço triste. Naufragou com seus trastes na pensão Nápoles, não a escolheu pelo nome. Condenado às pensões baratas que margeiam o rio, partilhando o quarto com estranhos. Consumiu-lhe as economias o tifo preto do rio Belém e agora sem emprego. Diante de uma janela, o vento da viagem arrepiava os cabelos do peito magro:
— Na minha idade, já viu, o que Alexandre Magno...
O outro olhava-o com espanto.
— Não fosse o rio... — em cueca na cama, limpando sob a unha uma sombra de barro.
Com o tifo até a noiva perdeu, ele sempre noivo! Não conseguia dispensar uma noiva na sua solidão. Breve namoro, entrava na sala, elogiava o café com rosquinha. Domingo era certa a galinha com vinho. Uma casa para se abrigar à noite, em vez de correr na garoa. Moço sem futuro, a noiva devolvia o anel.
Depois do tifo preto a pneumonia. Tardes alucinadas de febre, Chico se lembrava do pai. Severo, não admitia riso. Quando fugiu de casa imaginou que nem lhe desse pela falta. Nunca escreveu, informando o endereço, na ronda das pensões. Tarde demais soube que o velho não deixou retirar seu guardanapo da mesa. A mãe colocava mais um prato, assim viesse, todos aqueles anos, almoçar e jantar em casa. De noite, o pai subia ao quarto do rapaz: Chico, Chico, você voltou? Morreu antes que o filho visitasse a família. Agora sonhava com o velho, ao lado da cama: Chico, veio para casa, meu filho?
Se ao pai matou, às noivas não fez mal. Oh, as noivas de Chico — a todas amou! Nem uma entendeu que não queria ser enterrado com os pés no rio Belém. Propunha fugirem para outra cidade. Qual das ingratas confiou no seu amor? À noite rondava-lhes a casa, todas dormiam, esquecido na garoa fria.
Em junho é a garoa o céu de Curitiba. Sob a janela de uma ex-noiva começou a espirrar. A dona da pensão Ali Babá não o quis com aquela tosse. Escondido dos hóspedes, retirado para a enfermaria coletiva. Aquecia-se atrás da vidraça no raio de sol, os serventes abandonavam uma cama vazia no pátio — que fim levou o doente?
Depois do tifo preto e da pneumonia a pensão Nápoles. O nome não o deixava dormir.
— Se embarcasse na Santa Maria, na Pinta, na Niña?
Cuspia lá da janela, cuspia sangue contra o rio.
— Não tem mar, Chico, na tua Curitiba.


- Dalton Trevisan
in Novelas nada Exemplares, Relógio d'Água 

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