quinta-feira, janeiro 03, 2013

-
Outro livro ou, para ser exacto, uma fotografia: quando era miúdo, havia em casa dos meus pais uma enciclopédia juvenil constituída por artigos sucintos, de quatro ou cinco páginas, acerca dos mais diversos assuntos. Um desses assuntos era a Arqueologia, em que viria a trabalhar durante longos anos, progressivamente mais desiludido, pelos aspectos sociais, económicos e, até, políticos da sua prática. Porque o que, primeiramente, me atraíra para aquela "ciência" (e que tinha muito pouco de "científico") fôra, precisamente, uma fotografia que figurava na tal enciclopédia e onde se via um monarca sueco (Gustavo VI, suponho), a escavar, sozinho, um pequeno talhão, aparentando uma enorme paz, um enorme alheamento de quaisquer constrangimentos, obrigações ou outras vontades alheias com que foder a vida. Era (e é) assim que eu queria tudo. Que tudo e todos, em redor, concorressem para que pudesse estar "na minha", como agora se diz, sem me preocupar com mais nada. O facto de tanto assim querer, de só assim conceber a vida, e de assim não ter sucedido, deixou-me inconciliavelmente exilado de mim. Lixou-me, por completo, a vida: a vida económica, a vida social, a intelectual, a emocional, a psicológica, a afectiva, todas. E isso ocupa-me a cabeça em permanência. A que propósito vem isto aqui? É que, quando estou contigo, consigo não pensar nisso. Porque estás ajoelhada a meu lado, escavando aquele pequeno talhão, reis de um reino a norte de tudo.

 ---

[Uma resposta:]
Percebo-te bem. Percebo bem todo o texto. Todos à minha volta me parecem adequados ou, pelo menos, adaptados às filhadeputices do mundo e às lógicas sedimentadas... Vivo para 4 ou 5 coisas que são tudo o que me interessa. Uma delas é "fazer coisas" e outra é "fazer nada". O desfasamento entre as minhas necessidades e as necessidades da maioria das pessoas é tão grande que me vêem como alguém que nem sabe tomar conta de si. Sou obviamente uma falhada e não tenho (por enquanto) como o negar. É verdade: nem sei tomar conta de mim. Já desisti, aliás, porque percebi que, por mais que tentasse, seria sempre uma adaptada de segunda. Antes ser uma embaixatriz do meu ínfimo universo de borbotos e missangas ou a rainha do nosso pequeníssimo talhão. A minha mãe por vezes desespera e lamenta-se por ter educado mal os filhos, diz que não nos preparou para a vida real, para as dificuldades do mundo. O mundo é dos "espertos" e eu (isso é evidente) não sou "esperta". Essa é, de todas as conversas parvas da minha mãe, a que me deixa mais louca, porque a sinto como a mais alta traição àquilo que sou e em que acredito. A única coisa sensata a fazer é mudar o mundo; não havendo mão-de-obra para tal, o caminho que resta consiste em criar um outro mundo ao lado (ou pelo menos ir escavando o tal talhão...). Estou para aqui a escrever, a escrever, quando tudo que eu queria era enviar-te um bilhete só assim: "Faz as malas. Apanhamos o próximo comboio."


- Miguel Martins
in Cãibra, Ediresistência

Sem comentários: