domingo, janeiro 06, 2013

Estar, ou não estar


Estou neste meu quarto, que é o meu barco
ancorado no rio das horas.
E sei que estou aqui. Porque vejo, lá fora,
a noite, feérica, girando em seu eixo.
Árvore de tronco fixo e estrelas móveis.

Não tenho dúvida sobre estar em meu quarto.
Aqui estão os objetos do meu uso. O meu
criado-mudo, a minha "Máquina de Explorar o Tempo",
o meu rádio, e uma xilogravura de Goeldi:
um peixe, a duas cores.

E tenho os pés no assoalho.
Porque o assoalho me dá uma sensação dura, e física,
de um homem consciente do chão em que pisa,
sem flor nem saudade.

Estou aqui, mas estarei (mais veridicamente)
na lua, ou no sputnik que passou pela décima vez
sobre eu estar aqui.
Nesta atmosfera nuclear, mágica, espessa.

Ou nesta sensibilíssima e dourada chuva
radioativa.

Que me altera, já, o significado das palavras,
quando falo ou escrevo.

Um homem que discute com outro, lá longe,
fala de mim, sem saber que eu existo.

Entre duas bombas de hidrogênio
o meu coração bate sem nenhum direito de opção.

Que adianta o meu estar aqui?
Pois não dependo, apenas, de uma dor de cabeça
na cabeça de um dos grandes,
ou do sorriso de uma dama de espadas?

- Cassiano Ricardo
in Melhores Poemas, Global

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