quarta-feira, setembro 19, 2012

Birds in the night

O governo francês – ou foi o governo inglês? – colocou uma lápide
Na casa número 8 de Great College Street, Camden Town, Londres,
Onde Rimbaud e Verlaine, par exótico, tiveram um quarto,
Viveram, beberam, trabalharam, fornicaram
Durante algumas semanas tormentosas.
Ao acto inaugural assistiram decerto embaixador e presidente da câmara,
Todos os que foram inimigos de Verlaine e Rimbaud quando eram vivos.

A casa é triste, pobre, como o bairro,
Com a sórdida tristeza que diz bem com o que é pobre,
Não a tristeza fúnebre do que é rico e sem espírito.
Quando a tarde cai, como no tempo deles,
No passeio da rua, húmido e pardo o ar, um realejo
Toca, e os que aí moram, ao voltar do trabalho,
Dançam, se são jovens, e os outros vão para a taberna.

Curta foi a amizade singular de Verlaine, o bêbedo,
E de Rimbaud, o vadio, a discutir constantemente.
Mas podemos pensar que talvez um bom instante
Houve para ambos, pelo menos se cada um lembrava
Que deixaram para trás a mãe insuportável e a esposa maçadora.
Mas a liberdade não é deste mundo, e os libertos,
Rompendo com tudo, bem cara tiveram de pagá-la.

Sim, estiveram aí, diz a lápide, por trás dessa parede,
Presos do seu destino: a amizade impossível, a amargura
Da separação, o escândalo depois; e para este
O julgamento, dois anos de cadeia, devido aos seus costumes
Que a sociedade e a lei condenam, hoje ao menos; para aquele solitário
Errar de um canto ao outro da terra,
A fugir do nosso mundo e do seu progresso tão louvado.

O silêncio de um e a eloquência banal do outro
Compensaram-se. Rimbaud rejeitou a mão que oprimia
A sua vida; Verlaine beija-a, aceitando o seu castigo.
Um arrasta no cinto o ouro que ganhou; o outro
Esbanja-o em absinto e rameiras. Mas ambos
Sempre interditos pelas autoridades, pela gente
Que com trabalho alheios se enriquece e triunfa.

Então até a negra prostituta tinha direito a insultá-los;
Hoje, como o tempo passou, como passa no mundo,
A vida à margem de tudo, sodomia, bebedeira, versos escarnecidos
Já não importam neles, e a França usa os nomes e as obras de ambos
Para maior glória de França e da sua arte lógica.
Seus actos e seus passos investigam-se, dando ao público
Pormenores íntimos de suas vidas. Ninguém se assusta agora, nem protesta.

«Verlaine? Deixe-se disso, amigo, um sátiro, um verdadeiro sátiro
Ao tragar-se de mulheres; bem anormal era o homem,
Como você e eu. Rimbaud? Um católico sincero, como está demonstrado.»
E recitam-se trechos do «Barco Ébrio» e do soneto às «Vogais».
Mas de Verlaine não se recita nada, pois não está na moda
Com o outro, de quem se lançam textos falsos em edições de luxo;
Poetas jovens de todos os países falam muito dele em suas províncias.

Ouvem os mortos o que os vivos dizem depois deles?
Oxalá nada oiçam: deve ser um alívio esse silêncio interminável
Para aqueles que viveram com a palavra e morreram por ela,
Como Rimbaud e Verlaine. Mas o silêncio lá não evita
Aqui a farsa elogiosa repugnante. Alguém um dia desejou
Que a humanidade tivesse uma só cabeça, para assim lha cortar.
Talvez exagerasse: que fosse só uma barata, e esmagá-la.

- Luis Cernuda
(tradução de José Bento)
in Antologia Poética, Cotovia


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