quarta-feira, junho 13, 2012

Só as gralhas

1

lutar com as palavras, progredir
pelo interior desta guerra até chegar
à palavra única da perda, esmagá-la
contra mim, obrigar-me a dizer
o seu corpo dizimado.
O caos
Os cacos


2

a boca soletra uma palavra morta:
eis o nosso tempo: mortos
que abrem para outros mortos.
Só as gralhas persistem
rouquejantes, mostram
a violência da fome,
procuram maçãs podres
junto à macieira.


3

a palavra é uma luz incerta, ora acede
à voz que não guarda o segredo, ora decompõe
a árvore com um vagar exorbitante. Só as gralhas
voam alto num céu que vem da rússia.
Sob a catástrofe da chuva, a tarde é uma fuga,
sons que não ligam, não se ligam,
no telhado de ardósia, sons claros
invadem o quarto, som a som,
num gesto de cair.


4

a paisagem atingiu o limite: os meus olhos
não inventam mais relevos: o mundo
tem a nitidez inacessível do segredo

- Rui Nunes
in Telhados de Vidro, n.º4, Averno

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