A partilha começou a fazer-se muito cedo. Ainda hoje, o regresso à matriz me permite escolher. Não esqueço. Não esquecerei. É na memória, pela memória, que as escolhas mais íntimas são feitas. A viagem aos lugares do início purifica. Aos rostos, às pessoas, às roupas, às casas. A pobreza vista e sentida, vivida algumas vezes, impede-me qualquer retórica, faz-me suspeitar das palavras, torna clara a fraude da veemência que elas alimentam. As palavras têm o poder do esconderijo e da mentira: é preciso desasarticulá-las, macerá-las, até apagar a sua longa história de violência. Ou obrigá-las a cada instante a mostrar essa história, para que não mais enganem. História tão antiga que remonta à imprecação inicial.
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A palavra construiu o silêncio das vítimas.
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Todas as revoluções quiseram usá-la. Mas fizeram-no com a gramática do poder. Música e pintura compreenderam esse abuso e destruíram as respectivas sintaxes. Porque é nelas que o poder se acoita e manifesta. Que as frases crescem e a norma se estabelece: o sentido é o de uma natureza morta. Acabada. A «literatura», que é a escrita instalada na infâmia, tornou-se um dos últimos redutos desta obscenidade. Por isso, os transgressores são um som sem eco. Joyce, por exemplo. O respeito pela língua é o nojo de um texto. Escrever contra. Recomeçar dos escombros, com os escombros, de uma língua. Suspeitar da música das frases. Da melodia, essa trela, esse açaime. Tornarmo-nos suspeitos, com a raiva de quem sabe que, palavra a palavra, se ergue o muro da execução. Não escrever uma história: mostrar o resíduo de uma dor, de uma fome, de um deus, de uma injustiça. Não ter medo. Nunca. Da fronteira. Das fronteiras. É nelas que as pátrias estoiram.
Se misturam as línguas.
E o sentido se torna intraduzível.
- Rui Nunes
in Barro, Relógio d'Água
quarta-feira, maio 02, 2012
O político
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