quarta-feira, maio 02, 2012

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Há livros que acompanham uma vida: separam-se do seu autor e esquecem-no. Outros, confundem-se com quem os escreveu: são um corpo, uma dor, uma doença, um modo de morrer. Um nome.
Digo: Vou ler a «Guerra e Paz». E não: vou ler Tolstoi. Mas digo: vou ler Celan. Porque o que leio. Porque. Essas frases desconjuntadas são um corpo desconjuntado, uma língua reduzida a um sopro,
a haustos.
Curtos.

Todas as línguas em Celan são estrangeiras: o alemão, o yiddish, o francês, o romeno, o hebraico. Todas as pátrias. Todos os poderes. Eis um homem sem abrigo, porque as palavras só dizem ordens, repetem o faça-se inicial, são contaminações desse início. Esconderijos de Deus. Uma emboscada. Um embuste.

há livros que prolongam uma metáfora (Kafka). E não conseguem acabar. Lenta, lentíssima explosão:
a palavra «faça-se» abre para uma história sempre incompleta.

Perscrutar em todos os textos a sua inconclusão, dissecá-los, sabendo que o sentido se escapa pelos cortes, e que as feridas enraízam o corpo nos ossos, dão-lhe a coerência de uma pausa: a morte? as coordenadas?

Há livros que mentem. E à mentira chama-se paisagem. Ou harmonia. Ou felicidade. Ou história. Há livros que escondem a morte na sua descrição. E fogem.
Outros, morrem na palavra que os prolonga.

- Rui Nunes
in Barro, Relógio d'Água

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