ao Laureano, in memoriam
«A democracia manda-nos falar e eu murmuro
excita-nos ao grito e silencio. Depois a tirania
obriga a segredar. Então eu falo.
Impõe-nos o silêncio. É quando grito».
Assim ele ia, nestas lucubrações, em grande perigo
de estranhamento e dor sob o céu baixo
das nuvens suburbanas. «De mim sai o silêncio
como um grito». E caminhava. Nomes bárbaros
de indústrias e comércios seguiam-lhe o andar
(«são nomes de demónios?, de gigantes?») e as fachadas
irradiavam luzes de obscuros interiores.
Assim ele ia atento, regressando, em grande perigo.
«Não falo a vossa língua, não pertenço a esse código
por todo o lado oculto, o Livro não escrito
de onde saem ordens e discursos criminais».
Assim ia em combate, contrapondo voz humana
a seduções difusas e palavras-talismã.
E entretanto Outono, o fim da tarde. «A inteligência
comove-se a olhar seu próprio tempo». Alteou-se-lhe
de súbito o esterno, um arco tenso
sobre a democracia. «Não seja nunca o sonho
a comandar a vida. Que a voz que em mim compõe
me seja dura». E apressando-se
assim ele ia orando, de regresso, em grande perigo.
- Carlos Poças Falcão
in Telhados de Vidro, n.º11, Averno
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