O discurso não é propriamente novo e as acusações também não, mas ultimamente, não sei bem porquê, tenho lido – e ouvido – vários ataques à crítica de livros de poesia em Portugal. As acusações são, essencialmente, quatro:
- Mercantilização;
- Indefinição;
- Compadrio;
- Ineficácia.
Relativamente à primeira acusação, esta revela logo à partida um grave erro de compreensão sobre os modelos em que a crítica literária se pode apresentar. Os jornais e suplementos, onde as influências editoriais e de mercado mais se notam, raramente são espaço para reflexão sobre poesia e isso é mais um problema para a crítica do que um problema da crítica. Sobre isto há algumas coisas a dizer.
Em primeiro lugar, revela logo à partida o estreitamento mental de grande parte dos críticos da crítica, que se limitam a passear pelas páginas do Ípsilon, da Atual, da Ler e do Jornal de Letras e julgam que isso serve para legitimar a sua opinião.
Em segundo lugar, criou-se uma ideia fantasiosa acerca das pressões editoriais sobre os críticos dos jornais. Admitindo que existem a este respeito algumas situações lamentáveis no universo da crítica de poesia, o principal problema é o abastardamento do espaço que há para escrever. A Atual é disto o exemplo perfeito. O José Mário Silva montou na secção de livros do suplemento uma espécie de Governo de Vichy do mercado dos livros, onde apenas um ou dois críticos por semana tem direito a algum espaço e os restantes só têm que preencher umas micro-colunas, porque entre os tops de vendas e as tão fundamentais listas daquilo que pessoas “notáveis” andam a ler se gasta praticamente uma página. Mas mesmo na Atual a situação é hoje em dia melhor do que há uns tempos. No Ípsilon, a título de exemplo pessoal, publiquei em 2011 quatro textos sobre livros de poesia – Eduardo Pitta, Pedro Mexia, Golgona Anghel e Ana Marques Gastão –, sendo que todos têm bem mais de 6000 caracteres e não motivaram qualquer espécie de corte ou censura por parte dos editores.
Por último, várias reflexões a propósito deste tema juntam às acusações o argumento dos prémios literários. Só numa perspectiva macro é que estas duas situações estão relacionadas e, a meu ver, a forma como os prémios literários são atribuídos em Portugal revela muito mais sobre a concepção que o nosso universo dos livros tem sobre si do que propriamente sobre o trabalho – eficiente ou não – dos críticos prévio a atribuição desses prémios.
Importa acrescentar um outro dado. Um texto com menos de 2000 caracteres nunca será, salvo muito raras excepções, uma crítica. O seu nome é outro, é uma nota de leitura. Também por isto, tomar aquilo que se escreve sobre livros de poesia nos jornais como amostra suficiente, revela uma ginástica mental bem mal exercitada.
Reside aqui, de certa forma, o motivo central das acusações de indefinição, que eu até classificaria mais como facilitismo. O conforto com que alguns autores escrevem os tais 1500 ou 2000 caracteres sobre um livro de poesia dá a entender que preferem as limitações desse espaço e, pior, que não fariam muito melhor com o dobro ou o triplo. Não quero parecer persecutório, mas basta comparar os textos que o José Mário Silva publica na Atual com as versões ligeiramente alargadas que põe no blogue para perceber que nem com mais 10 000 caracteres aquilo deixaria de ser uma simples nota de leitura construída quase só a partir de citações.
A propósito de citações, esta é outra questão mal resolvida. Um texto de crítica que não use bastantes citações do livro em análise é um texto fraco. Só assim um texto de crítica estabelece verdadeiramente um diálogo com o autor do livro e com os leitores e não se limita a ser um monólogo de bazófias professorais. Esta é a primeira parte – e essencial – do contraditório. A segunda parte existe pouco porque os autores preferem quase sempre encurralar-se nas suas limitações ou nas suas preconcepções fantasiosas sobre capelinhas e perseguições. Neste aspecto, não posso deixar de pensar que há algum sentido em afirmarmos que não temos melhores críticos de poesia porque também não temos melhores poetas.
Mudando agora o enfoque, cito uma frase do manuel a. domingos num ciclo de textos sobre crítica literária: “[A] maior parte dos poetas decide arriscar a crítica literária, em vez de fazerem reflexões sobre aquilo que leram. Devem pensar que têm, em si, o saber suficiente para tal. Esquecem-se que, para isso, existem os críticos literários”. Lamentavelmente, são diversos os níveis em que estas ideias não fazem qualquer sentido.
Começamos pelo disparate estatístico. Dizer que a maior parte dos poetas decide escrever textos de crítica literária é tão acertado como acreditar naqueles 3% de americanos que têm “medo de Deus” de que fala a Sarah Palin para se referir aos ateus. É verdade que a maioria das pessoas que escrevem sobre poesia é gente que tem poemas publicados por aí. Percebe-se o impacto que a frase pretende ter, mas dizer que “a maior parte dos poetas decide arriscar a crítica literária” é dar a imagem de que o panorama da poesia portuguesa é bem melhor do que aquilo que ele na realidade é, porque grande parte dos nossos poetas abdica militantemente de ter uma opinião sobre poesia, achando que os versos são depoimento suficiente. Muitas vezes não são.
Por outro lado, talvez não esteja a entender bem o que significa “fazerem reflexões sobre aquilo que leram” para o manuel a. domingos, mas a crítica literária é, em parte, uma reflexão sobre um livro lido. Se uns poetas fazem essa reflexão mentalmente, com o rabo sentado numa almofada colorida e com pauzinhos de incenso a arder, e outros preferem escrever e, depois, publicar esses textos em jornais ou revistas, isso já é com cada um.
Diz ainda que “[os poetas] devem pensar que têm, em si, o saber suficiente para tal. Esquecem-se que, para isso, existem os críticos literários”. Um poeta que não tem “em si” o saber suficiente para criticar um livro de poesia é um mau leitor de poesia e, consequentemente, um mau poeta. Quanto à segunda parte desta citação, eu também poderia dizer que muitas das pessoas que por aí andam a escrever poesia se esquecem que, para isso, existem os poetas, mas não vou por aí. Contento-me com afirmar que esta ideia de separação absoluta entre escrever poemas e criticar livros de poesia, como se ambas fossem profissões de fronteiras totalmente definidas, não tem qualquer elaboração intelectual e dá, até, a ideia de que não se sabe muito bem o que é que um crítico literário é afinal.
A crítica literária, tal como a poesia, deve relevar as relações de identidade ou de conflito que subjazem forçosamente a qualquer operação intelectual. Não se trata aqui de assumir o extremo em que o Michaux colocou a questão que, depois, o Herberto Helder recuperou. A poesia, e a crítica literária, não se fazem necessariamente contra todos, mas fazem-se necessariamente contra alguns e, por isso, uma crítica ou uma poesia que não se coloquem contra nada nem a favor de nada, são maus exercícios.
Se sobre a terra não houvesse mais que neutralidade, desapareceria a própria poesia. Este é o primeiro ponto que assumo como conclusivo e que assumo como um dos problemas reais da crítica literária e da poesia em Portugal: a neutralidade.
Em primeiro lugar, revela logo à partida o estreitamento mental de grande parte dos críticos da crítica, que se limitam a passear pelas páginas do Ípsilon, da Atual, da Ler e do Jornal de Letras e julgam que isso serve para legitimar a sua opinião.
Em segundo lugar, criou-se uma ideia fantasiosa acerca das pressões editoriais sobre os críticos dos jornais. Admitindo que existem a este respeito algumas situações lamentáveis no universo da crítica de poesia, o principal problema é o abastardamento do espaço que há para escrever. A Atual é disto o exemplo perfeito. O José Mário Silva montou na secção de livros do suplemento uma espécie de Governo de Vichy do mercado dos livros, onde apenas um ou dois críticos por semana tem direito a algum espaço e os restantes só têm que preencher umas micro-colunas, porque entre os tops de vendas e as tão fundamentais listas daquilo que pessoas “notáveis” andam a ler se gasta praticamente uma página. Mas mesmo na Atual a situação é hoje em dia melhor do que há uns tempos. No Ípsilon, a título de exemplo pessoal, publiquei em 2011 quatro textos sobre livros de poesia – Eduardo Pitta, Pedro Mexia, Golgona Anghel e Ana Marques Gastão –, sendo que todos têm bem mais de 6000 caracteres e não motivaram qualquer espécie de corte ou censura por parte dos editores.
Por último, várias reflexões a propósito deste tema juntam às acusações o argumento dos prémios literários. Só numa perspectiva macro é que estas duas situações estão relacionadas e, a meu ver, a forma como os prémios literários são atribuídos em Portugal revela muito mais sobre a concepção que o nosso universo dos livros tem sobre si do que propriamente sobre o trabalho – eficiente ou não – dos críticos prévio a atribuição desses prémios.
Importa acrescentar um outro dado. Um texto com menos de 2000 caracteres nunca será, salvo muito raras excepções, uma crítica. O seu nome é outro, é uma nota de leitura. Também por isto, tomar aquilo que se escreve sobre livros de poesia nos jornais como amostra suficiente, revela uma ginástica mental bem mal exercitada.
Reside aqui, de certa forma, o motivo central das acusações de indefinição, que eu até classificaria mais como facilitismo. O conforto com que alguns autores escrevem os tais 1500 ou 2000 caracteres sobre um livro de poesia dá a entender que preferem as limitações desse espaço e, pior, que não fariam muito melhor com o dobro ou o triplo. Não quero parecer persecutório, mas basta comparar os textos que o José Mário Silva publica na Atual com as versões ligeiramente alargadas que põe no blogue para perceber que nem com mais 10 000 caracteres aquilo deixaria de ser uma simples nota de leitura construída quase só a partir de citações.
A propósito de citações, esta é outra questão mal resolvida. Um texto de crítica que não use bastantes citações do livro em análise é um texto fraco. Só assim um texto de crítica estabelece verdadeiramente um diálogo com o autor do livro e com os leitores e não se limita a ser um monólogo de bazófias professorais. Esta é a primeira parte – e essencial – do contraditório. A segunda parte existe pouco porque os autores preferem quase sempre encurralar-se nas suas limitações ou nas suas preconcepções fantasiosas sobre capelinhas e perseguições. Neste aspecto, não posso deixar de pensar que há algum sentido em afirmarmos que não temos melhores críticos de poesia porque também não temos melhores poetas.
Mudando agora o enfoque, cito uma frase do manuel a. domingos num ciclo de textos sobre crítica literária: “[A] maior parte dos poetas decide arriscar a crítica literária, em vez de fazerem reflexões sobre aquilo que leram. Devem pensar que têm, em si, o saber suficiente para tal. Esquecem-se que, para isso, existem os críticos literários”. Lamentavelmente, são diversos os níveis em que estas ideias não fazem qualquer sentido.
Começamos pelo disparate estatístico. Dizer que a maior parte dos poetas decide escrever textos de crítica literária é tão acertado como acreditar naqueles 3% de americanos que têm “medo de Deus” de que fala a Sarah Palin para se referir aos ateus. É verdade que a maioria das pessoas que escrevem sobre poesia é gente que tem poemas publicados por aí. Percebe-se o impacto que a frase pretende ter, mas dizer que “a maior parte dos poetas decide arriscar a crítica literária” é dar a imagem de que o panorama da poesia portuguesa é bem melhor do que aquilo que ele na realidade é, porque grande parte dos nossos poetas abdica militantemente de ter uma opinião sobre poesia, achando que os versos são depoimento suficiente. Muitas vezes não são.
Por outro lado, talvez não esteja a entender bem o que significa “fazerem reflexões sobre aquilo que leram” para o manuel a. domingos, mas a crítica literária é, em parte, uma reflexão sobre um livro lido. Se uns poetas fazem essa reflexão mentalmente, com o rabo sentado numa almofada colorida e com pauzinhos de incenso a arder, e outros preferem escrever e, depois, publicar esses textos em jornais ou revistas, isso já é com cada um.
Diz ainda que “[os poetas] devem pensar que têm, em si, o saber suficiente para tal. Esquecem-se que, para isso, existem os críticos literários”. Um poeta que não tem “em si” o saber suficiente para criticar um livro de poesia é um mau leitor de poesia e, consequentemente, um mau poeta. Quanto à segunda parte desta citação, eu também poderia dizer que muitas das pessoas que por aí andam a escrever poesia se esquecem que, para isso, existem os poetas, mas não vou por aí. Contento-me com afirmar que esta ideia de separação absoluta entre escrever poemas e criticar livros de poesia, como se ambas fossem profissões de fronteiras totalmente definidas, não tem qualquer elaboração intelectual e dá, até, a ideia de que não se sabe muito bem o que é que um crítico literário é afinal.
A crítica literária, tal como a poesia, deve relevar as relações de identidade ou de conflito que subjazem forçosamente a qualquer operação intelectual. Não se trata aqui de assumir o extremo em que o Michaux colocou a questão que, depois, o Herberto Helder recuperou. A poesia, e a crítica literária, não se fazem necessariamente contra todos, mas fazem-se necessariamente contra alguns e, por isso, uma crítica ou uma poesia que não se coloquem contra nada nem a favor de nada, são maus exercícios.
Se sobre a terra não houvesse mais que neutralidade, desapareceria a própria poesia. Este é o primeiro ponto que assumo como conclusivo e que assumo como um dos problemas reais da crítica literária e da poesia em Portugal: a neutralidade.
- David Teles Pereira
1 comentário:
Caro Diogo,
tal como o fiz com o David, agradeço-lhe o tempo e a atenção que os meus textos lhe mereceram.
Com os melhores cumprimentos
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