sexta-feira, janeiro 27, 2012

A vida não me interessa.

A vida não me interessa. Algumas florentinas esbeltas, de xale escuro pela cabeça, alguns tipos de homens fortes – e mais nada. De ilha a ilha – Corvo e Flores – vão quinze milhas – mas que distância as separa!... Aqui há escrivães de fazenda – empregados públicos – senhores e plebe. Compreendo o Corvo, não compreendo os interesses mesquinhos, moídos e remoídos numa pequena vila isolada a cem léguas do mundo. Vejo às janelas, por dentro das vidraças, fisionomias tristes de velhos que estão desde que se conhecem à espera de quem passa – e não passa ninguém. É aqui que o hábito deita raízes de ferro. Oh, meu Deus! descubro que a gente enterrada há cinquenta anos se encontra outra vez nas Flores, viva e aferrada às mesmas palavras e às mesmas manias do passado, numa meia-sombra em que se cria bolor. Estou talvez no Purgatório – o Inferno é mais ao norte... Certos seres mortos na minha mocidade, e que eu não sabia onde se tinham metido, foram desterrados para as Flores. Até personagens de romance! Até a D. Felicidade do Eça aqui habita e exala os seus gases, e outras damas antediluvianas com broches ao pescoço e barrigas tão grandes como já hoje não existem barrigas no mundo! Visitei uma senhora de idade que nunca saiu de casa e até a paisagem da ilha desconhece. Quem não trabalha só pode fazer uma coisa: sentar-se nos bancos de pedra da Misericórdia e esperar a morte. E na verdade aqui tanto faz estar vivo como morto e sepultado num jazigo de família.

- Raul Brandão
in As Ilhas Desconhecidas

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