quinta-feira, janeiro 26, 2012

Criatura n.º6, por Osvaldo Manuel Silvestre



Ao número 6, a “Criatura” ficou verde, deixando-se das habituais tonalidades soturnas. Se o gesto é de afirmação, saúda-se, tanto mais que só lhe podemos reconhecer razões e razão, pois, no concerto escasso das revistas portuguesas de poesia, “Criatura” é aquela a que mais confiamos a hipótese de uma renovação geracional. A revista merece a nossa confiança, cabendo neste número o papel de revelação a Ana Duarte. Uma geração depois, reconhece-se o impacto produtivo do imaginário de Adília Lopes, ainda que “por outras palavras”: “Gosto de escutar às portas / quanto os outros fazem amor / (ou lá como se diz). / Gosto de pensar que fazem / o que eu também já fiz, / embora / por outras palavras”.

A diferença de “Criatura” começa por ser gráfica. A revista consiste em “poemas na página”, em composição legível e sóbria, sem índice, apenas com um separador com o nome do poeta que, no caso de ser estrangeiro, beneficia de breve apresentação. A abrir e a fechar dois textos, sempre: o “prefácio” em prosa, o “posfácio” em verso, ambos anónimos. “Criatura” responde, pois, a um ideal de “poesia, apenas”. Que, contudo, prefácio e posfácio põem em causa, na medida em que jogam a poesia para fora de si mesma, lançando-a contra as razões de um mundo desencantado. Do “prefácio”: “A escrita serve o encanto. A si, serve-se de uma furiosa atenção e recompõe melodiosamente o mundo, encontra nele uma cadência pessoal”. Uma mudança de tom é contudo perceptível neste nº 6, e essa mudança é reconhecível na “substituição” das considerações metapoéticas do “posfácio” do nº 5 pelas muito diversas que agora encontramos no texto final deste número: “muito cedo se fez / tarde demais neste país / tão dado à esgotada / encenação das suas memórias / senil adorando ruínas / seu império / d''exílios”. O poema queixa-se da “falta de tesão” nacional e termina mesmo em modo perigosamente citacional: “tudo nos chama e uns passos / perdidos aos outros dirão / que é hora”.

A mudança de tom parece imperiosa, e é isso que reconhecemos na forma como David Teles Pereira estraga um poema, até aí excelente, em torno do suicídio de Celan - “Morte pela água (Ciclo)” -, com um terceto final que introduz abruptamente o paroquial contexto português: “Este país é um lugar perfeito e, por isso, inóspito. / Portugal é um cemitério, / há séculos que todos andamos a caminhar descalços sobre corpos”. O mesmo autor não consegue, em dois poemas magníficos - “Tractatus Theologico-Politicus (Capítulo XVI)” e “Leviathan (Capítulo XVII)” -, deixar de oscilar entre uma tematização do largo espectro do teológico-político e um retorno ao pequeno contexto d''“esta merda de pátria”, no segundo poema, que aliás começa, sem pátrias, por uma pergunta fundamental: “''Sabias que as palavras eslavo e escravo / têm a mesma origem?'', pergunta-me Krystof”. Como fundamental, e sem pátria, é ainda a resposta: “''Sabes'', respondo-lhe, ''somos todos eslavos''”.

Podemos talvez ler este número como o registo poético de uma oscilação entre o não-nacional e formas várias de manifestação do “pequeno mundo” da nação, na era da troika, e da poesia. António Gregório seria um caso extremo dessa resistência da pequena escala (da memória e da comunidade, aferidas pelo pessoal e pelo anedótico, em poemas pequenos e perfeitos, ambas as coisas em demasia), um caso próximo do do espanhol Ángel Mendoza. No outro extremo, os textos em prosa de Clara Pinto Caldeira sobre os campos de extermínio, “lugares áridos, sem possibilidade de mapa”, lugares enormes “em vazio” e que suscitam o desejo de um “corpo universal”: “Estico os braços no meio de tudo e não toco nada. Quero um corpo universal. Em vez disso, alcanço vagamente um americano que pergunta: porque não fugiram?” Por seu turno, Golgona Anghel, em mais um impressivo conjunto de poemas, manifesta quer um gosto pela incisão e nitidez cortante de coisas como “nomes e camas”, quer uma capacidade rara para saltar disso para a escala maior do “desastre civilizacional”: “Não gosto de contar os desastres em detalhe / mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas. // Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie, / condecorar o medo, / cortar-me a mão com que limpo as feridas / de uma civilização em queda”.

Em Luís Filipe Parrado, um poeta a seguir, a figura do todo surge partida, como no poema “Partes de um todo”, em que a tentativa de ler um livro difícil num banco de jardim é substituída pela contemplação: “Então levantei os olhos das páginas, / pousei o livro, vi um homem novo / aproximar-se e passar à minha frente / com um saco de plástico / com maçãs vermelhas numa das mãos / e uma caixa de cartão, com ovos, na outra. / O saco de plástico era transparente / e revelava nitidamente o esplendor e a forma / perfeita das maçãs, todas muito juntas / como partes de um todo”. Uma notável alegoria do estético enquanto membrana de um todo aproximativo, cujo “esplendor e forma” seria o de coisas “todas muito juntas” num saco de compras, ou no hipermercado de que elas poderiam provir - essa versão também aproximativa do teológico-político no capitalismo tardio.

Diogo Vaz Pinto, por fim, exibe de novo a sua capacidade para extrair consequências da narrativa da modernidade: “Sou arraçado. Vadio, / pela parte em nós que é de cão, nobre, / pela parte que é de lobo. Entre o quotidiano / e o mito, coleccionamos debaixo da língua / as unhas de deus”. No campo da poesia, tal narrativa coloca o poeta numa posição tardia, posição que uma figura tão clínica como a do “pior leitor” traduz, numa espécie de leitura a um tempo literal e paródica da “ansiedade da influência”: “Leio, pior cada vez, cada vez / mais tarde, tão depois de tudo, / e desentendo-me com todos eles, / cada um dos meus autores. Fico ali / meio na provocação, faço-lhes as traduções / mais abusadas. O pior leitor”. Nas palavras do poeta espanhol José Ángel Valente, “Dissolvida no conteúdo da tradição, a experiência pessoal é anónima (é a de todos os homens)”. Fiquemos com a lição do “pior leitor”, “essa inclinação maligna”: não pessoas mas versos. Criaturas.


texto publicado no Ípsilon, dia 20 de Janeiro de 2012

Sem comentários: