Horas de louça vibram junto ao mar.
Que coisa antiga o dia! Seu troféu
nós, operários, o exibimos ao sol.
E sua migalha é, na areia, um vestígio
do espaço baldio que abrigou outrora
a trilha das formigas geodésicas.
O dia é apenas um calhau: algo esponjoso
entre animais à espreita
de um velho fervor desfeito
Do que, no mundo, é pobre como um piolho a caminho dos aeródromos
da ganga do tempo faz-se o dia
que o homem muda em sonho em seio em flor.
Dia, borra da eternidade, vejo-te escondido
no toldo dos circos, no estrondeio do amor.
Teus detritos tapam a boca do horizonte.
No mundo sem aragem, as baratas, moscas e excrementos
cobrem os sarcófagos que restaram de mudas hecatombes
e onde múmias enrugadas, últimas sobras de antigos poderios, nada sabem da tarde equatorial que estremece ao zumbir das cigarras e lava-bundas.
Dia, branca pantera lavradia,
tua luz ilumina as catraias nas praias circulares
e teu mormaço doma as pitangueiras.
Neste universo cuneiforme, comido por vento e ferrugem,
só o dia, com o seu pulso sônico, ilumina os mictórios
e os dragões amarelos das manhãs.
Não te desejo eterno. Quero que imites o dia
e seus engenhos jamais monótonos. Quero
que continues a linhagem dos que acreditam na aurora
e a vêem nascer, roxa, nas paliçadas da noite
e dar lugar ao dia, que é praça e degrau
e sol no rosto frio do algemado.
O dia é fogueira e emblema
e faina, como no tempo daquelas mulheres
que, entre a relva e a estrela, faziam almofadas de bilros.
É o aroma das verdes florestas
que adere às sacolas vazias dos piqueniques.
É um nome de navio num casco enferrujado.
Como a pele, o dia veste a tua nudez.
Está nas flâmulas e no cheiro de alcatrão dos cargueiros.
Cintila nas bananas e glicínias.
Está no menino sob o futuro arco-íris.
O dia, vertical como um púbis.
O dia que grita como o povo.
- Lêdo Ivo
in Poesia Completa, Braskem
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