sexta-feira, janeiro 06, 2012

Luis Alberto de Cuenca (traduções - parte II)

Um amor impossível

Encontrei-te na rua e,
depois, jantámos juntos.
Disse-te outra vez:
a minha vida quer ser aquilo a que Bowra (i) chamava
«the pursuit of honour through risk».
E o teu sorriso transforma-se
numa careta obscena,
e continuas sem saber o que é o pudor.
Antes da meia-noite
já estavas morta, meu amor.



A chamada

A noite tinha sido demasiado longa e demasiado escura.
Queria ouvir a tua voz. Que as tuas doces palavras
me trouxessem alguma paz. Que o carinho
que sentias por mim viajasse pelo telefone
em direcção ao meu coração ferido e derrotado.
Queria ouvir a tua voz e atendeu-me o teu amante.



De vez em quando

Já morreste há demasiados anos,
Mas de vez em quando regressas. Fecho os olhos
E voltam os dias em que viajámos juntos
a bordo do barco do amor, no tempo
em que éramos tu e eu os únicos habitantes
do mundo e as ondas rebentavam na praia
com o doce gemido de prazer e o mar era
um lago imenso e morno que nos pertencia.



Hammurabi (ii)

As miúdas como tu riem-se nas barbas
Dos mesmíssimo Hammurabi .

«Olho por olho
E dente por dente»
(Fez que se escrevesse na Babilónia
há quatro mil anos).

As miúdas como tu respondem
ao amor com desdém
e ao desdém com amor.
Para provocar Hammurabi.



Mensagem numa garrafa partida (iii)
A Roger Wolfe

Aqui estou, aborrecido como um fungo,
na ilha de sempre (a que tem
uma palmeira no meio),
cercado por tubarões,
como um náufrago daqueles
que aparecem nas piadas.
Faz qualquer coisa, meu amigo:
escreve-me uma carta longa e maravilhosa,
telefona-me,
envia-me uma gravação com a tua voz.



Vamos ser felizes

Vamos ser felizes um momento, vida minha,
ainda que faltem motivos para sê-lo e o mundo
seja um globo de gás letal e a nossa história
um filme piroso de bruxas e vampiros.
Felizes porque sim, para que depois gravem
na nossa sepultura o seguinte epitáfio:
«Aqui jazem os ossos de uma mulher e um homem
que, não se sabe como, conseguiram ser felizes
dez minutos consecutivos.»


Carta dum sioux a um masoquista

Que esperas da morte, cara pálida?


Inimigo comum

Como Machado, em criança eu também
sonhava com os heróis da Ilíada,
mas misturando-os num sacudidor
com os pais da Revolução.
Marat, Robespierre, Babeuf, Lenin e Trotsky
viviam nos meus sonhos de garoto
junto a Páris, Ajax e Diomedes.
Apesar das discrepâncias ideológicas,
nunca lutavam entre si,
pois tinham à sua frente um inimigo
comum: a realidade.


Sobre uma carta de John Keats

Eu Deus pelo qual jurar. O bom tempo (suponho).
A saúde. Muitos livros. Uma paisagem de Friedrich (iv).
A mente pacificada. O teu corpo nu no terraço.
Um canteiro de lilases onde rezar a Flora.
Dois ou três inimigos e dois ou três amigos.
Tudo isso por junto é a felicidade.


O quarto vazio

Neste quarto
já nada se pode fazer,
senão morrer.



Europa
em homenagem a Julio Martínez Mesanza

Estas fronteiras não são as minhas fronteiras.
Este não é o mundo das velhas runas.
Governam os cobardes, os obscuros.
Como dói viver na agonia
da cruz e na ferrugem da espada.
Como dói esta noite da coragem.
Como doem os atlas. E não há sinais
que anunciem o fim da derrota.

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(i) Cecil Maurice Bowra, académico inglês.

(ii) Rei da Babilónia que promulgou o Código de Hammurabi, uma das mais antigas codificações da humanidade.

(iii) O título desde poema é, também, o título de um dos livros do poeta Roger Wolfe.

(iv) Casper David Friedrich, pintor romântico alemão.


1 comentário:

Lp disse...

Que luxo!