Venho de desertar em Bouvines (i) ou de combater em Midway (ii),
venho da vitória ou da cobardia.
Não sei se estou à procura de um corpo ou se é de um amigo que preciso,
se venho para fomentar um duelo ou se venho para evitá-lo.
Podes receber-me nos teus braços ou não me reconhecer.
No que me rodeia, tudo é sombra ou um perfil demasiado concreto.
Vim para te matar ou morrer às tuas mãos.
Dedicatória
A terra estava seca.
Não havia rios nem fontes.
E jorrou dos teus olhos
água, toda a água.
Romeu
Regressa o pesadelo do amor. Reconheço
o seu velho semblante desdentado. Regressam
os ácidos nocturnos, a sede e essa fragrância
que o tempo não consegue desterrar de minhas mãos.
Mais uma vez sou a vítima que aguarda o sacrifício
que nunca vai chegar. A espera eterna.
Regressam a raiva inútil, os mastins do ódio
e estes muros de cal nos meus olhos dourados.
Agredida
Beba isto. Ponha um vestido.
Lamento não ter chegado a tempo,
Pode tomar um banho mais tarde. Agora vamos sair.
Não toque no rosto. Não faça
perguntas. Tem a chave do seu armário?
Obrigado. Este há-de servir. É amarelo.
As feridas doem-lhe? Beba mais um pouco.
Não podemos perder mais tempo. Consegue andar sozinha?
Vamos. Há-de passar. Prometo-lhe.
Brilhante
Deixou-me uma escova, creme e uma máquina
de barbear nas margens dos lavabos.
Pus a água fria a correr e disse:
«Ontem estive quase a violá-la.»
«A sério que pensou em mim?», perguntou ela.
Não respondi. Continuei em frente ao espelho,
a viver o meu barbeado. Eram onze.
Podia vê-la ao fundo do quarto,
rutilando ao sol da manhã.
Fuga para o Egipto
Pagava-lhe para que me matasse
e desapareceu para sul. Todas fogem.
Aceitam cheques, flores e mentiras.
Prometem matar-me. Dizem:
«Não vais chegar ao Outono. Juro-te.»
E desaparecem antes da Primavera.
Esta também desapareceu. Com um mapa
do Egipto e as chaves do meu carro.
Deus queira que os ventos não guiem
a sua nave a bom porto. Que uma chuva vermelha
lhe queime o coração, se é que tem um.
Que nunca chegue ao Egipto, essa maldita.
As lágrimas de Beba (iii)
As lágrimas caídas dos olhos
de Beba cantarei, a sua morna fonte.
Longe do seu caudal nada existe.
Lavam o mundo, servem de alimento,
conhecem o segredo das coisas.
São o desmaio firme, a queda
que ascende, a ternura da força.
São lágrimas que igualam os abismos,
afugentam as espinhas e fazem sangue.
São as pérolas mais tristes que conheço.
A tomada de Bizâncio pelos Godos (380 d.C.)
Franquearam as portas da cidade. Os bárbaros
adiantam dez séculos o curso da história.
Não haverá eunucos para reger os destinos do globo.
Basílio Diyenís(iv) não manchará a sua espada
com sangue sarraceno. Balduíno da Flandres (v)
não será proclamado imperador. Vasíliev (vi)
não escreverá dois tomos sobrecarregados de citações.
Os olhos de Teodora (vii) não deslumbrarão o mundo.
A Vénus de Willendorf
De entre as miúdas americanas
que estudam espanhol na escola
à frente da tua casa, há uma gorda
que é igual à Vénus dos teus sonhos.
Debaixo de uma camisola de elefante
onde se lê “University of Indiana
(Jones)” e umas calças de hipopótamo,
move-se pelo mundo com a arte
que lhe deu a sua ascendência mitológica.
Já há vários dias que vigio
desde a varanda a sua quadruple papada
e o sol dourado da sua cabeleira.
Já há vários dias que lhe atiro,
quando põe ao alcance da mira dos meus olhos,
dardos de amor e flechas de desejo.
Mas nunca chegam ao seu destino.
Benvinda
Benvinda ao palácio da dúvida,
à casa do medo.
Os ladrilhos do bairro
sentiam falta dos teus passos.
O verão
Jantar naquele comboio com aquele gajo
que conheceu o Buñuel, ir para a cama
com a consciência limpa, seguir viagem
até chegar ao ouro da praia,
onde eras a rainha do verão.
E regressar esgotada à barbárie
Do outono de Madrid, aos punhais
cravados nas costas, aos exames,
à pequena morte quotidiana.
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(i) Batalha de Bouvines, em 27 de Julho de 1214, na qual os franceses derrotaram a aliança entre germânicos, ingleses e flamengos, comandada pelo Sacro Imperador Otão IV.
(ii) Vitória naval dos Estados Unidos sobre o Japão no Pacífico Sul entre os dias 3 e 7 de Junho de 1942.
(iii) “Beba”: diminutivo de Genoveva, nome da primeira mulher do autor.
(iv) Basílio Diyenís Akrita, o protagonista de uma saga popular bizantina.
(v) Balduíno IX, Conde da Flandres e posteriormente Basílio I de Constantinopla.
(vi) Alexander A. Vasíliev, historiador russo e autor de uma História do Império Bizantino.
(vii) Imperatriz Teodora I, mulher do Imperador bizantino Justiniano I e uma das mais influentes mulheres na história do Império Romano do Oriente.
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