quinta-feira, dezembro 22, 2011

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Era uma vez um povo de marujos
que quis passar as Índias impossíveis,
dobrando cabos, moçambiques, bacos,
nadando em Africas desertas e armadilhas.
Ó herança em meu sangue devastada!
Ó piloto afogado, ó rei sem nau!

Mas é preciso vento, não torpores,
caravelas mais bêbadas no mar.
Ó manjares de Goa, ó fel dos mouros!
Ó melindanos, ó grandezas minhas!
Ó naufrágios finais com vastos sons
da tuba dos avós descobridores!

Amo-vos sons em formas de aventuras,
heróis de mares, terras de mourama,
silvos de combates, chinas inventadas,
ocidentes, orientes, suis sem água,
e nortes, nortes nunca conquistados.

Amo-te "idioma - vasco", sempre ouvido
no clima dessas quíloas afogadas,
esses mares antigos navegados,
escorbuto comendo a língua viva,
sebastianismos vendo irreais reinos,
essa linguagem toda, minha fala.

Língua remota, língua de presenças,
de suscitadas ressonâncias, amo-a,
que me deu a experiência dos abismos
e também das realidades inefáveis
e também de saudade amarga e doce,
e também das verdades mais ardentes.

Em suas ressonâncias ouvi esses
países que ficaram no subsolo
enoitados, sonhados, pressupostos,
dentro de mim, incrustados, refrangidos,
contrapostos, aliás inquisidores,
aliás, ó outra língua, doce língua.

Sobrevivente modo de falar,
das bocas soterradas em meu sangue,
coração missionado diz por ele
os dons que a divindade lhe outorgou.
Aceitamento desde zero idade,
continuada porfia de meus anos.

- Jorge de Lima
in Invenção de Orfeu (excerto do Canto VIII), Record

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