quinta-feira, novembro 17, 2011

Um gume carnívoro

Um gume carnívoro
de asa doce e homicida
sustém um voo e um brilho
ao redor da minha vida.

Raio de metal crispado
fulgentemente caído
flanqueia e a meu lado
faz um triste ninho.

Meu templo, florido terraço
de minhas idades idas,
negro está, e meu coração,
meu coração com cãs fica.

Tal é a má virtude
do raio que me rodeia,
que volto à minha juventude
como a lua à aldeia.

Num vislumbre lanço
sal à alma e sal aos olhos
e flores de teias de aranha
de minhas tristezas colho.

Aonde irei que não vá
a minha perdição encontrar?
O teu destino é da praia
e a minha vocação o mar.

Descansar destes trabalhos
de furacão, amor ou inferno,
não é possível e o que dói
doerá, será sempre eterno.

Mas por fim poderei vencer-te,
ave, raio inacabável,
coração, que da morte
ninguém há-de duvidar.

Segue, segue gume
voando, ferindo. Algum dia
se porá o tempo amarelo
sobre o meu retrato.

- Miguel Hernandez
(tradução de Ana Salomé)
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