Rui Caeiro, Um Fio Que Te Prende À
Vida, Lisboa: Língua Morta, 2011
A MÃO NO OMBRO
Para o Rui Caeiro
Para o David Teles
Pereira e o Diogo Vaz Pinto
Para todos os amigos em
volta
Para falar deste vigésimo livro de Rui Caeiro – e uma das edições mais
bonitas da Língua Morta –, começaria por recordar uma passagem de Cioran no Tratado
de Decomposição: “O abismo de dois mundos incomunicáveis abre-se entre o
homem que tem o sentimento da morte e o que não o tem; ambos morrem, claro; mas
um ignora a sua morte, o outro conhece-a; um morre de uma só vez, o outro não
pára de morrer… […] Um vive como se fosse eterno; o outro pensa continuamente a
sua eternidade e nega-a em cada pensamento.”[1]
E se escolhi esta passagem é porque, em Um Fio Que Te Prende À Vida, se
trata justamente desta consciência da transitoriedade, da precariedade de todas
as coisas, uma das características definitórias do ser humano. Leia-se, na
página inicial: “Vida, e vida presa, e apenas por um fio, é coisa que toda a
gente tem. Embora nem toda a gente saiba que tem, ou dê por isso. Nem toda a
gente está cá para o efeito. Dar por isso não deixa de ser, não obstante, a
melhor das razões para cá se estar. E não há assim tantas.” (p.5)
Numa época em que
tudo à nossa volta está de algum modo ligado – o estar on-line, as
ligações em rede, os fios eléctricos para carregar todo o tipo de aparelhos que
se tornaram indispensáveis ao nosso quotidiano, incluindo os suportes médicos
com que nos prolongam cada vez mais a esperança de vida –, o homem tornou-se,
mais do que nunca, um homem-“marioneta” (uma expressão utilizada na
p.7).
Mas este livro vem ressalvar um redentor espaço de liberdade de liberdade
individual, na medida em que, apesar da presença do fio ser inegável, podemos,
sim, controlar o modo como decidimos encará-lo, antes de mais pela simples
possibilidade de o ignorar: “Trata quotidianamente do seu fio? Prefere fazer
como se ele não estivesse lá, como se não existisse?” (p.6) Tal como nos
pertence a opção de ver as cicatrizes, não como marcas de menores ou maiores
aproximações à morte, mas antes como costuras do nosso fio, momentos em que foi
necessário prender-nos com mais força à vida.
Neste sentido, também Deus se torna redundante: “O fio, esse fio, até
podia ser baço ou resplandecente, pouco adiantava para o caso. Como não
adiantava a circunstância de um deus qualquer estar a segurar numa das pontas.”
(p.6) Aliás, a questão da redundância de Deus, da sua irrelevância, é uma
das constantes no arco traçado pela obra de Rui Caeiro, desde o primeiro livro
–intitulado precisamente Sobre deus, sobre a magna questão da existência de
deus (1988) e utilizando uma epígrafe de Cioran – até este Um Fio Que Te
Prende À Vida.
*
Regressando, então, ao pressuposto inicial da consciência da
transitoriedade, é quase impossível, ao lermos o livro de Rui Caeiro, não nos
lembrarmos de outro caso em que essa consciência se cristalizou também na
metáfora do fio: O Funâmbulo, de Jean Genet.
Mas grandes diferenças separam ambas as obras. Em primeiro lugar,
enquanto o estilo de Genet, nesse livro, é feito de lantejoulas, de excessos,
explorando os limites do poético, o livro de Rui Caeiro traz-nos uma voz de uma
secura mais próxima de um Beckett, a secura necessária para que o fio seja,
afinal, o fio de pesca de que fala o último texto do livro, para que possamos
sentir o anzol preso na boca, castigando-nos a carne para não nos deixar
esquecer a ténue fronteira entre vida e morte: “Um fio banal. Um fio de
nylon, parecido com aquele que ajuda a tirar o peixe da água, tirando-lhe
também a vida.” (p.20)
Em segundo lugar,
para Genet, a consciência da transitoriedade projecta-se toda sobre a morte,
considerada como uma libertação de uma vida sem valor nem sentido. Leia-se, por
exemplo: “A Morte – a Morte de que eu falo – não é a que segue logo a tua
queda, mas precede a tua aparição no fio. Antes de subir é que morres. O que
dança já está morto – decidido a todas as belezas, capaz de todas elas.”[2]
No livro de Rui
Caeiro, pelo contrário, as sombras lançadas pela morte são reconhecidas, mas
também a luz que o facto de estarmos conscientes dela projecta sobre a nossa
existência. Não nos podemos esquecer que o fio nos prende à vida e não à morte.
Aliás, esta última palavra não é utilizada uma única vez em todo o livro. Está
subentendida em cada página, ampliando, intensificando a vida, lançando aquilo
a que Cioran chamava “uma qualidade de novidade” sobre as coisas e os
momentos.
E talvez seja esse um dos aspectos de que mais gosto neste livro e que
me fizeram sentir mais próxima do texto – a reivindicação ou a recuperação do
espanto relativamente ao que nos rodeia, a capacidade de resistirmos ao cansaço
(o “ennui”) e de nos deixarmos surpreender. Esse espanto surge, desde logo, no
adjectivo “atónito” da p.9: “Se já alguma vez se deteve, atónito, para o
sentir na mão, deslizar por entre os dedos, pois nada mau, nada mau.” Mas
também na “curiosidade” da p.10: “É um simples fio já um pouco esgarçado. /
Um como que farrapo de curiosidade.” E ainda na comovente “esperança” da
p.14: “Um fio que te prende à vida. Um fio, um frio, um calafrio. / Uma
esperança, teimosa, numa Primavera que há-de vir. Que se veja, que se cheire.”
É o espanto de,
mesmo na solidão irredutivelmente individual do homem, se saber reconhecer a
presença dos outros, de respeitar a existência de mais fios e o modo como eles
se condicionam, por caminhos muitas vezes invisíveis, entre si.
*
Creio que só podia ser assim, neste livro, tendo em conta o Rui Caeiro
que conhecemos, sempre com a sua atenção ao que vai acontecendo à volta, ao
pormenor do homem que fala sozinho e a desoras nas escadas da igreja ou à dor
de um gato. Com curiosidade pelo diferente e generosidade para aderir a
projectos novos, desses com que tentamos reforçar o fio que nos prende à vida e
aos outros.
Terminaria, pois, com uma citação do escritor argentino Manuel Mujica Lainez,
que descreve assim a personagem de um escritor (podia ser, para mim, o Rui
Caeiro), num dos seus romances mais pequeninos mas mais bonitos, Los Ídolos:
“É um guia insubstituível. Até pelos seus silêncios. Até pela maneira como
nos pousa levemente a mão no ombro, quando mostra uma árvore, uma estátua, um
letreiro de uma estalagem e nos faz sentir de modo mais profundo a proximidade
dele, para que partilhemos plenamente a sua emoção.”[3]
Inês Dias,
25 de Novembro de 2011
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