quinta-feira, outubro 20, 2011

Sopra as tuas velas

O corpo com a idade impõe ora folga, ora um
alpendre certo (com vinha de enforcado) aos apartes,
enquanto surripia o humor aos corvos.
Um dia esquece-nos, expele pelos olhos uma faúlha
preta, e eis-nos arredados
de toda a escuta como as flores de plástico, que
macambuzam a televisão da avó.
Já fui mais festivo, fotografava ao acaso e, na ampliação,
detectava a secreta geometria dos fundos, as
gengivas que desbravam o riso de Deus.
Mais presciente a minha filha de três anos: «és a
sereia Ariel ou o linguado?».
Nem hesita: o linguado!
Entra no teu silêncio e sopra as tuas velas, recomendava,
astuto, o Victor Hugo.

- António Cabrita
in Não se emenda a chuva, Livros de Horas

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