terça-feira, outubro 04, 2011

Mário Alberto (1925-2011)

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O PREDADOR COM ASAS DE ANJO
-texto de Baptista Bastos-

Mário Alberto é um subversivo: não gosta do que é imposição, entende que todas as leis são injustas, defende o conceito de que a regra é não ter regra, e nunca se sentiu bem em nenhum regime. A nação deste homem é Lisboa, capital Parque Mayer. Já nasceu com sapatos de caminhar o mundo dos sonhos, e foi lapidado com um humor tão corrosivo que o ácido sulfúrico parece água benta quando diz o que tem a dizer. Ateu homologado, iconoclasta desabrido, grande praticante do desporto líquido, exímio alquimista do sexo, brigão de olho esbugalhado e murro exacto, glutão com insaciáveis apetites vitais, e amigo para sempre - ei-lo que aí vem, passo calmo, mãos nas costas, atentíssimo às ancas, às nádegas, às pernas, às mamas.

A biografia deste cidadão exemplar pela ética, modelar pelo trabalho, pode perceber-se por aquilo que ele recusa, mais do que por aquilo que ele aceita. O que ele recusa é a hipocrisia militante, a mediocridade indomável, a ignorância atrevida, os colarinhos gomados, as frases brunidas, a bem-pensância. O que ele aceita é a coragem de ser livre, a altivez dos que enfrentam o medo, os escrúpulos dos que persistem em ter carácter contra os que vendem a alma ao Poder.

O Mário Alberto ali vai. Está a subir a Avenida e vai direitinho ao Parque, onde vive e sonha e acredita. Veio de lá de baixo, das ruas que festejam o rio, e gosta de passear, olhando as pessoas, o painel dos nobres edifícios, a saga dos aflitos que pedem ternura. Lá vem ele. Vê-nos e logo se solta o riso claro, o gesto largo. A medida de um homem que se regista no tom de voz, na gargalhada fértil, no balanço da palavra traquinas, assacanada, maliciosa.

Ainda não há muitos anos, ele parecia um aventureiro latino-americano, cabelo ondulado e cheio de brilhantina, bigode de fiambras e casaco assertoado, à maneira. Comeu os belos manjares que a vida lhe ofereceu, num festim generoso e grandioso: tudo o que era mulher de calibre, o Mário Alberto petiscou com esfuziante prazer e a altanaria de quem ama e é amado.

Lá vem ele. Agora, os cabelos estão brancos e soltos. 0 passo está mais lento, porém passo firme, porém passo decisivo e decidido, porém passo de quem não tropeça na floresta de enganos.

Lá vem ele. Um dos grandes cenógrafos portugueses. Um dos grandes cartunistas portugueses. Um dos grandes pintores portugueses do sarcasmo. Um pássaro antigo. Um predador com asas d'anjo. Um ser cada vez mais raro.

Lá vem ele. Mário Alberto. O que nunca se calou, mesmo quando o silêncio nos era imposto com baionetas e hissopes, com botas cardadas e com água benta. Lá vem ele. Lá vêm aqueles cabelos brancos e soltos, a lembrar-nos de que só os tem quem os merece. Lá vem o meu amigo Mário Alberto. Lá vem o nosso amigo Mário Alberto.

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