As organizações culturais comprazem-se noticiando a quebra de recordes do número de espectadores de exposição para exposição, de temporada para temporada. Uma falácia que alimenta o populismo e a demagogia sobre as artes e os artistas, fazendo equivaler a recepção de uma obra ao consumo de um qualquer produto de supermercado
Há uns anos muita da crítica na imprensa decidiu incluir nos seus textos uma valoração em estrelas, bolinhas, ou mesmo números, que encima a respectiva crítica. Mais recentemente, e no que diz respeito a críticas a obras de artes performativas, a esta valoração é acrescentada a menção: sala quase vazia, meia sala ou sala cheia, tentando com isto, e ainda antes da opinião do crítico, sumariar a qualidade, a pertinência e o valor artístico da obra em causa. Tais práticas correntes contribuem para fomentar a relação perversa entre juízo do crítico e a suposta pertinência da obra, que passa a ser dada pela classificação e pelo número arbitrário de espectadores que a ela assistiu, número que por sua vez permite todo o tipo de especulações sobre uma suposta auto-sustentabilidade financeira da referida obra. Claro que isto começou a acontecer porque a crítica, enquanto instituição, tinha já perdido o seu poder, e o facto de haver uma classificação que, embora pudesse variar entre os críticos, se supunha basear-se em critérios comuns fundamentava uma prática corporativa, assim recuperando algum poder na definição do estatuto de arte para as obras classificadas. Mas tal iniciativa, desprovida de qualquer justificação estética ou de juízo crítico, foi de imediato adoptada por várias organizações culturais que, face a um concerto, a uma exposição ou no relatório anual de actividades, elegem como primeiro factor de avaliação da sua actividade artística o número de espectadores que tiveram ou, mais ainda, se comprazem noticiando a quebra de recordes de ano para ano, de exposição para exposição, de temporada para temporada, do número de espectadores, indicados sem qualquer referência contextual ou o mínimo de sofisticação intelectual. Estamos nestes casos no domínio exclusivo do consumo, que, de uma forma muito primária, faz equivaler a recepção de uma obra à compra de um qualquer produto de supermercado. Sabemos quanto Guy Debord, Jean Baudrillard, Pierre Bourdieu, John Frow e muitos outros analisaram com particular perícia a transformação da obra de arte na sociedade contemporânea em mera mercadoria dentro de um sistema de valores que é, no circuito de produção e distribuição, completamente arbitrário. É isto que faz com que uma obra de arte possa valer x ou y, do mesmo modo que um gestor tanto pode ganhar mil como milhões, sem que tal tenha qualquer correspondência com o valor de uso, a quantidade de energia produzida ou os níveis de necessidade de sustentação do autor ou gestor. Que sejam interlocutores dos mecanismos de criação e de difusão das artes a sustentar a valoração do que vêem e apresentam prioritariamente na dimensão do consumo diz bem de como o sistema das artes perverteu a relação privada da obra com o seu receptor e com o seu autor, gerando um conjunto de falácias que alimentam o populismo e a demagogia sobre as artes e os artistas.
A classificação em estrelas (e não é por acaso que são estrelas, com tudo o que remete para a dimensão glamorosa do espectáculo, ainda que se possa tratar de literatura e até de poesia) ou números (como se tratasse de uma classificação de examinador), na sua pretensa objectividade e sumarização, não diz das condições físicas de recepção da obra, do humor do crítico, do contexto de produção e de difusão da mesma. E sobretudo não diz de algo que é absolutamente subjacente e determina a recepção e a valoração da mesma: o dinheiro, os afectos, o encantamento, o gosto, a teoria privada do crítico sobre arte, a sua agenda particular, os seus fetiches artísticos. Donde se prova que as estrelas e outras valorações quantitativas são um absurdo nefasto que nenhum motivo, como a falta de tempo do leitor ou o excesso de oferta, justifica. Por sua vez, a alusão quantitativa aos públicos de uma obra pouco ou nada diz quer sobre a obra em causa, quer sobre os próprios públicos, e é dos aspectos mais perniciosos e que maior manipulação permitem aos políticos e aos mecenas populistas.
São muitos os exemplos de obras que foram feitas para os públicos que "haveriam de vir": "Os Lusíadas", a obra de Beckett, a "Recherche" de Proust, que na época não tiveram público e não necessariamente por maldade deste mas porque a recepção de uma obra exige um tempo adequado à mesma e a actualidade não é sinónimo de contemporaneidade. A opacidade intrínseca de uma obra nunca é popular, no sentido de geralmente acessível. São aliás estas duas as razões fundamentais por que uma obra de arte foi, é e será sempre minoritária, sendo que esta dimensão minoritária não é quantificável, ou seja, a medida não passa pelo número de ouvintes ou receptores presentes. Uma obra feita para um único espectador tem a sala cheia se houver um espectador - e há vários exemplos recentes -, bem como uma sala de 1.500 lugares cheia pode querer dizer que fica aquém da expectativa de angariação de público que poderia ser do dobro ou do triplo.
Quer isso dizer que todas as obras que num determinado momento se tornaram populares são más? Não necessariamente, mas quer dizer que de um modo ou de outro houve algum grau de recepção da obra - dos muitos níveis que há nela - que a tornou popular para além daquilo que são os mecanismos de promoção da obra, aspecto fulcral desde a alfabetização geral, o estímulo ao consumo, a associação do consumo de arte a um status, a dimensão decorativa da produção artística, a confusão entre ecletismo e ausência de gosto e a dimensão do reconhecimento, estímulo maior da presença de um público ou de leitores. Tanto mais um produto é publicitado ou está presente nas prateleiras de um supermercado à altura dos olhos, tanto maiores são as possibilidades da sua aquisição, ao contrário de objectos ou obras desconhecidas ou não publicitadas. O que significa dizer que uma exposição teve 5.000 espectadores na sua inauguração? Nada em relação à pertinência artística da obra. Muito em relação à dimensão tribal do lugar, do evento, do DJ desse dia, do marketing utilizado, para o qual foram precisos recursos financeiros. A obra não existe fora da sua recepção e há obras que, pela sua fragilidade física, semântica ou plástica, são à partida minoritárias, esperam pouco público, particularmente um público que quer conhecer, e não apenas reconhecer, o público para quem há uns anos havia uma estação da rádio que tinha o slogan exacto - "para uma imensa minoria". O canal acabou e um enorme vazio ocupou o seu lugar e a imensa minoria passou a inexistir.
A minoria presente face à recepção de uma obra não decorre da incapacidade técnica ou artística dos seus autores. É aliás muito mais comum encontrar esta falta de qualidade em espectáculos de grandes audiências. Que qualidade técnica ou que recepção artística se podem ter numa ópera ou num concerto de estádio para milhares de pessoas em que a obra é mediada por ecrãs e todo o som sujeito a uma intervenção determinante do técnico de som?
É imperativo afirmar que todo o autor, artista, director de museu, de galeria, editor deseja ter públicos, leitores, espectadores, encher as salas, porque muito triste é uma sala vazia, uma exposição sem público, os livros atirados para o depósito. E se são gestores públicos e conscientes (e porque não o hão-de ser?) têm consciência de que estão a gerir dinheiros públicos; contudo, não a qualquer preço e, sobretudo, não entendendo que a receita de bilheteira seja o atestado da qualidade da obra, até porque as receitas são outro aspecto de complexa análise e que está enredado em dogmas: o estado da economia familiar reflecte-se na aquisição do bilhete, a distância é um factor de aquisição, o custo por espectador é de muitas formas variado.
De facto, seria desejável que, no actual sistema de produção, a aquisição contribuísse para pagar o custo de obra, que o número de compradores aumentasse de tal forma que se aproximasse dos custos reais, porque de algum modo autonomizava ainda mais a produção. Aqui estamos no domínio da sociologia da arte e sabemos como as artes são historicamente minoritárias e que mesmo em países de grande escala não pagam os custos: algum entretenimento sim, mas mesmo esse é geralmente pago pelos recursos financeiros cativados pelos mecanismos publicitários mais massificadores. Não há pois qualquer argumento que possa atribuir uma relação directa entre públicos e bilheteira, entre bilheteira e qualidade da obra, entre quantidade de público e pertinência da obra. O discurso político que assim o afirma fá-lo por motivos populistas a que geralmente se acrescenta um enorme desconhecimento sobre os mecanismos de produção artística, a formação dos públicos e mesmo a própria história das artes. E ainda, porque todas as avaliações decorrem de um grau de irracionalidade, são geralmente discursos ressentidos na exacta expressão de Max Scheler: porque é que uma minoria entende uma obra que eu não entendo e ainda por cima pode ter prazer com ela? Disto eu me ressinto, diz o discurso do ressentido.- António Pinto Ribeiro
in Ípsilon / 12.10.2011
quarta-feira, outubro 19, 2011
As artes sempre foram, são e serão minoritárias
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