[Texto de David Teles Pereira, publicado no Ípsilon de 19 de Agosto]
À leitura de “Vim porque me pagavam” (Mariposa Azual, 2011) pouco importa que Golgona Anghel tenha nascido na Ilíria Ocidental, como também pouco importa a sua língua materna e, até, pouco parece importar a história e a cultura do seu país, a Roménia. Tudo isto, aparentemente, foi afastado deste livro com uma precisão intencional, à excepção de uns poucos momentos em que se entrevêem algumas referências ao seu país de origem, ainda que estas surjam quase sempre como um mecanismo de auto-ironia da autora, não mais relevante que qualquer outro: “Não vou pedir asilo./ Desconheço os avanços/ ou retrocessos económicos do meu país./ Já falei de Drácula que chegue.” (p. 13). Diga-se já agora que, curiosamente, um dos poucos poemas em que se nota que Golgona Anghel é uma poeta estrangeira a escrever em português é o seu “Portugal, dia um de Maio de dois mil e oito”, onde a autora se relaciona com este país na segunda pessoa do plural, não conseguindo, apesar disso, estabelecer com ele uma verdadeira comunicação que não pareça algo forjada: “As nossas amantes baratas./ As nossas putas disponíveis – agora, se faz favor./ Os nossos sonhos transatlânticos./ Os nossos hábitos light, soft, ecológicos, se possível” (p. 70). Apesar de isto que se acabou de dizer, não deixa de ser verdade que é absolutamente central saber que o português não é a sua língua materna e, principalmente, que a sua aproximação e aprendizagem desta língua se fizeram muito mais pela via literária, do que pelo hábito de ouvir uma língua e pela necessidade de a falar.
Este segundo livro de Golgona Anghel, depois de “Crematório Sentimental – guia de bem-querer” (Quasi Edições, 2007), é um dos livros mais fortes entre aqueles que foram lançados pela Mariposa Azual, que, como outras pequenas editoras, tem vindo a ocupar o espaço que as editoras de maior dimensão, como a Assírio&Alvim, abdicaram conscientemente de ocupar. Na sua estrutura, “Vim porque me pagavam” encontra-se dividido em três partes – “Sem destino”, “Sem personagem principal” e “Sem tempo” –, sem que seja à partida perceptível ao leitor a razão de ser desta divisão. Não é necessária uma leitura particularmente atenta para ficar claro que o esquema de organização dos poemas é um dos aspectos menos conseguidos deste livro. Os poemas têm, entre si, muito mais coerência do que as partes pelas quais Golgona Anghel entendeu reparti-los, o que tem um resultado particularmente estranho: sendo coeso enquanto livro, porque todos os seus poemas são nitidamente impulsionados por um mesmo motor, as suas partes nunca o são, ficando a ideia de que um qualquer outro puzzle destes poemas continuaria, no final, a formar a mesma imagem.
Face a “Crematório Sentimental”, apesar de o parentesco entre estes dois livros resultar da partilha de mais alelos que apenas a autoria, há um notável progresso tanto a nível prosódico como estilístico. Um dos aspectos em que melhor se observa este progresso é na disposição dos versos em cada um dos poemas. O verso relativamente longo que abundava no livro de estreia é, em “Vim porque me pagavam”, substituído por frases ou versos mais curtos, que fazem os poemas convergir elipticamente para os seus momentos finais: “Escrevo a palavra vazio/ depois da palavra espera.// Pouso as mãos sobre os joelhos cansados./ Limpa/ mal vestida,/ – olhai –/ sou o novo modelo para o fracasso” (p. 22) ou “Eu fácil eu farto eu fome/ com a vida marcada na pele,/ olha-me de frente/ quando gritas e esticas a pernoca./ Quem manda aqui sou eu./ Agora abre a boca.” (p. 33).
Porque é que se disse que é central a forma de aproximação de Golgona Anghel à nossa língua e cultura, ao igual que às línguas e culturas francesa e espanhola, que por vezes surgem neste livro? Porque o resultado disto é uma composição prosódica dos poemas muito mais mecânica, porque advém da aprendizagem pela literatura do português, do que natural, apesar de os seus versos fluírem quase tão instintivamente como uma conversa e de abdicarem, em grande maioria, do refinamento lírico: “A depressão começa a andar na moda./ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a paciência, o rumo da história,/ perdi a memória,/ a cabeça, senhores telespectadores,/ (tinham entretanto inventado a televisão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala.” (p. 67). Neste nível, o trabalho poético de Golgona Anghel não é apenas admirável, é também completamente original.
“Vim porque me pagavam” é um livro desconcertante, o seu aparato de recursos não pode deixar de causar uma certa confusão no leitor. Utiliza do humor tanto o seu efeito cómico como a sua capacidade para humilhar a nossa natureza, principalmente quando vira esta contra si própria, contra o seu corpo [“Tudo tende à efabulação no nosso país/ e é com estes elementos alegres,/ que nós procuramos,/ se não restaurar o império de África,/ ao menos celebrar os santos populares.” (p. 52) ou “O meu corpo foi sempre um campo de batalha./ Passaram tantos soldados por aqui,/ mas a revolução ficará sempre sem futuro” (p. 20)]; cultiva uma pose aparentemente tão despreocupada quanto inofensiva, mas que, como um lobo que se disfarça de cordeiro, é uma ameaça, o que é evidente no próprio título do livro ou em versos como estes: “Obrigado por procurem a eternidade da raça./ Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça” (p. 26) ou “Vou esvaziando os copos/ e começo a compilar beijos,/ como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:/ somos todas putas, rapaz,/ com ou sem vodka.” (pp. 51 e 52). Repare-se que em contraste absoluto com o minimalismo estético da capa e da encadernação deste livro, a poesia de Golgona Anghel é extravagante, plena de exuberâncias e adornos, apesar de isto acontecer muito no seu aparato imagético e referencial e pouco na composição lírica dos seus poemas [“Vim porque me falaram de apanhar cerejas/ ou de armas de destruição em massa./ Mas só encontrei cucos e mexericos de feira, metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras/ de lata.// A bordo, alguém falou de justiça/ (não, não era o Marx).” (p. 58)].
Mas há uma outra razão, talvez mais importante ainda, para este ser um livro desconcertante. Ele revela-nos, com uma profundidade e uma honestidade que não podem deixar de ser notadas, alguém que tem uma visão do mundo totalmente mutilada, porque a vê com uma muralha de livros – com uma muralha literária – por intermédio. Este detalhe é, contudo, ambivalente. Mostra que Golgona Anghel é uma das poucas autoras que de forma sincera e, ao mesmo tempo, competente consegue traduzir esta condição de interpretação do mundo nas palavras dos outros. Contudo, ao mesmo tempo, essa muralha é uma fronteira que a autora coloca entre o leitor e uma chave de compreensão dos seus versos. À partida, daqui não resultaria necessariamente um problema de leitura, mas para isso acontecer, a abundância de referências a livros e a autores, personagens e lugares de livros deveria ser muito mais frugal ou, pelo menos, muito mais estruturada e menos orgíaca. É importante ter sempre em conta a lição de Mallarmé, a poesia é feita de palavras e não de ideias e, acrescente-se, muito menos de referências literárias cultas. Estas só muito tangencialmente atestam a qualidade de um poema e a sua profusão incorre não poucas vezes num resultado incómodo: a artificialidade [“Talvez o requinte em retardar,/ que fazia com que o marquês de La Fayette,/ dirigindo-se para a flor do seu desejo,/ tomasse séculos a chegar à hora H./ Sabe o que dava tanta pica à hora H/ nos tempos do rei Artur? Não sabe... Pois,/ resultados de não lerem/ Geoffroy de Monmouth (século XIII).” ou “Mas não foram estes floreados rimados/ que mais prejudicaram Dante aos olhos de Beatriz?/ Não dizia a própria Laura que Petrarca poderia ter tido acesso às suas graças se não falasse demais?/ Sem dúvida, tudo isto não está escrito/ na obra de Petrarca,/ mas o Dom Quixote insiste em confirmar a história” (repare-se que ambas as citações fazem parte do mesmo poema, pp. 53 e 54)]. Assim, a maturação a que os versos de Golgona Anghel conseguiram chegar, se nos detivermos no nível prosódico, não foi completada no que ao sentido e significado dos seus poemas diz respeito e isto, ao contrário do que possa parecer, não é de todo um trabalho de ideias, é sempre de palavras.
Há, no entanto, que colocar esta autora no seu enquadramento. A poesia de Golgona Anghel, na vertigem de uma procura identitária, arrisca muito mais do que aquilo que estamos habituados a ver em grande parte dos percursos poéticos dos autores portugueses, principalmente se nos centrarmos nos mais novos. Nesse risco, a sua poesia embate muitas vezes nos problemas referidos, mas, no cômputo final, a coragem com que o faz é compensada, porque consegue escapar tanto ao carimbo blasé, uma pose alternativa entretanto oficializada, como à poesia burocrática e ao seu programa de consumo arrumado nos balcões da tradição literária. Nos seus melhores poemas, esta autora não procura uma defesa fácil naquilo que seria o seu espaço de conforto, como também não se desperdiça no risco de tentar conquistar um espaço de originalidade unicamente pela aparência da diferença. Por isso mesmo, “Vim porque me pagavam” é um dos livros de poemas mais interessantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta, que colhe os dividendos ao mesmo tempo que paga as dívidas do projecto que honesta e conscientemente promete com os seus versos.
Nota: quatro estrelas
Golgona Anghel, Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, 2011.
1 comentário:
“Vim porque me pagavam” é um dos livros de poemas mais interessantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta, que colhe os dividendos ao mesmo tempo que paga as dívidas do projecto que honesta e conscientemente promete com os seus versos.
Deve ser interessante por causa da destreza imitativa (alguns chamam a isso um nome feio, mas não eu, que não digo palavras feias)!
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