quinta-feira, julho 28, 2011

Instantâneos

Para o poeta admirável
e amigo querido, Haroldo de Campos

Aparecem, desaparecem, voltam, piam entre os
ramos da árvore dos nervos, bicam horas já maduras
– nem pássaros nem idéias, reminiscências, anunciações;

cometas – sensações, passos do vento sobre as
brasas vivas do outono, faíscas no talo da corrente
elétrica, surpresa, rosa súbita;

búzio abandonado na praia da memória,
búzio que fala a sós, taça de espuma de pedra, alfaia
do oceano, grito petrificado;

lenta rotação de países, incêndios nômades, paralisia
repentina de um deserto de vidro, transparências pérfidas,
imensidões que ardem e se apagam num piscar de olhos;

o sangue flui entre altos pés de hortelã
e colinas de sal, a cavalaria das sombras acampa
às margens da lua, rufar de tambores no areal
sob um planeta de osso;

melancolia de uma arruela oxidada, coroam um
escaravelho rei de uma xícara rota, mariposas velam sobre
uma fuselagem adormecida, girar uma roldana sonâmbula;
premonições e rememorações;

chuva ligeira sobre as pálpebras da aurora, chuva
tenaz sobre o verão devastado, chuva tênue sobre
a janela da convalescente, chuva sobre o confete
da festa, chuva de pés leves e sorriso triste;

caveira de quartzo sobre a mesa da insônia,
cavilações de madrugada, ossos roídos, tesouras e brocas,
agulhas e navalhas, pensamento; corredor de ecos;

discurso sem palavras, música mais vista que ouvida,
mais pensada que vista, música sobre talos de silêncio,
corola de claridades, chama úmida;

enxame de reflexos sobre a página, ontem e hoje
confundidos, o visto enlaçado ao entrevisto, invenções
da memória, lacunas da razão;

encontros, despedidas, fantasmas dos olhos, encarnações
do tato, presenças não chamadas, sementes de tempo:
destempos.

- Octavio Paz
(tradução de Nelson Ascher)
in Poesia Alheia, Editora Imago

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