sexta-feira, junho 03, 2011

Não é assim também que se amam
os monstros, retocando o segredo
que os faz sempre voltar, adormecido
o desejo, às pregas da sepultura?

Fernando Guerreiro

Os gatos, cegos de andar ao sol pelos
telhados, descem aos pátios
interiores, atentos, entre o desleixo
das lagartixas, escutam
os pássaros que se falam, imprecisos,
que se mordiscam, luz. Uma luz vivíssima,
mão ardendo sobre a áspera
quietude deste mundo.
No espelho que quebraste bailam esta manhã
borboletas bêbadas de sol. Pedaço a pedaço
também me fixo, me acho entre
o assombro e a vergonha, enquanto
se cobrem bruscamente de flores e bichos
os muros, cor e descanso
na trégua de uma adoração cheirosa.

Sem dinheiro, os miúdos
espertam, sacanas-fantasiosos, vêm vender
pombas aos turistas, mostram-se prestáveis,
fogem-lhes com as máquinas.
O de sempre e o demais: as raparigas e os cafés,
os velhos bebendo o álcool silencioso dos demónios,
e eu, olhando, anotando, com a alma
balbuciada e a tarde espreguiçando-se
no meu colo.

Semanas sem nada. Dor. Cansaço.
Aos poucos volta uma espessura aflita
à voz, pulsação e canto,
linguagem cardíaca onde as coisas se acham
alucinadas. Apertar o copo, um gole
de agoniada cerveja, defender o que me resta
entre chuva e versos. De lado, caído, um desses
bilhetes: não-me-deixes… E falas baixo,
de tão longe, rimas discretamente
e não sabes das horas, fechas-te.
Esse quarto obsessivo, imundo, a lâmpada
mordendo-te o ombro, a sua insistência louca
contra as noites. Não me assino, risco,
arrependo-me.

Já só um rádio velho, este coração que,
entre ruído e canções estrangeiras,
não deixa esse teu nome, rainha absurda.
Puta, putinha de merda, com a tua lista
de impossíveis, com esse teu vício de morte,
deixaste-me nos lábios um gosto
de fruta caída, um vasto suspiro envenenado.

Para sempre esta lisboa cesárica
e o consolo das verdadeiras noites,
noites que enterram gerações inteiras.
Para sempre esses olhos exilados, gastos
de sono, fundos demais. E essa sílaba
imensa, sombra que escava,
nos enche a boca. Traficantes de eterno,
bando de anjos degredados. As estrelas
devoram-nos, as ruas levam-nos,
no escuro abrimo-nos como flores,
quando amanhece somos
a vossa sensação de estupor e náusea
perante um mundo que não acabou.

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