sábado, maio 14, 2011

Muito Menos por Muito Menos

[Texto de David Teles Pereira, publicado no Ípsilon de 13 de Maio]


“Menos por Menos – poemas escolhidos” (D. Quixote, 2011) reúne a obra poética de Pedro Mexia, composta por seis livros, substancialmente rasurada num único volume. Este gesto de cesura, longe também de ser inédito entre os autores da sua geração não deixa, por isso, de ser curioso num autor de cuja obra, neste momento, seria legítimo esperar uma inclinação mais prospectiva e menos perspectiva. Neste âmbito, a publicação desta poesia escolhida merece especial atenção.

Comece-se pelo aspecto exterior. O corte – dos livros e não dos poemas – não pode deixar de surpreender pela sua extensão. Repare-se, por exemplo, que “Eliot e Outras Observações” (2003), tem, só por si, mais páginas de poemas que “Menos por Menos”. A releitura da sua própria obra e, também, o seu reequacionamento revelam em Pedro Mexia uma maturidade louvável, já que poucos poetas com considerável obra publicada se têm atrevido a fazê-lo, preferindo quase sempre fuga fácil das obras reunidas. Há que ser exacto, poucos poetas se podem dar ao luxo de afirmar com igual intensidade toda a sua obra. E, mesmo esses, o mais certo é terem-se submetido a um processo de cesura prévio susceptível de inundar gavetas de papéis. Os restantes, quando pretendem afirmar dessa forma as suas Obras ou arriscam problemas de consciência ou então são imprudentes.

Claro que nada disto deverá ter, por si só, uma conotação crítica. Numa obra completa as fraquezas são o espelho onde podemos observar com maior exactidão a medida de um triunfo. Por outro lado, a revisão, pelo menos enquanto simples processo, não acrescenta necessariamente valor à obra. A composição de um poema parte de um nada – a tão glosada página branca – para alguma coisa, já o trabalho de reestruturação de uma obra poética pode assemelhar-se, de certa forma, ao talhar de um bloco de pedra à procura de um objecto lá dentro. Nesse caminho de corte, o risco tanto surge na parcimónia como no exagero. Aqui, mais uma vez, o esforço de Pedro Mexia merece elogio. Poucos dos poemas retirados emprestariam valor algum a este “Menos por Menos”. A mesma obra atrás citada, “Eliot e Outras Observações”, é um exemplo perfeito disto, onde o poeta conseguiu expurgar com bastante eficiência alguns dos seus poemas mais desastrosos e, também, alguns dos poemas que pouco ou nada acrescentavam em relação àqueles que melhor representam o cerne da poesia de Pedro Mexia, como “Lisboa, Cerca Moura” (p. 81).

Importa acrescentar que este foi, apesar de tudo, um trabalho apenas de corte. Os poemas em si não foram sujeitos ao mesmo crivo, tal como não o foi a sua ordenação. Algum trabalho neste último aspecto poderia ter evitado o grande problema na leitura sequencial do livro: com poucas excepções, este livro tem duas partes praticamente estanques, a primeira composta pelos dois primeiros livros e a segunda pelos três últimos, funcionando “Avalanche” (2001) como uma parte de transição entre estas duas e sendo, por isso, o livro que, em si, melhor condensa a poesia deste autor. Revelam-se, por isso, alguns problemas de comunicação dentro da própria obra aos quais Pedro Mexia não se deveria ter esquivado, pelo menos para ser absolutamente coerente com a monda extrema que aplicou a cada um dos livros.

Pedro Mexia é um poeta-leitor. Aliás, para se ser mais rigoroso, é um leitor-poeta. Esta sua faceta, que potenciou certamente o meritório trabalho de corte que estes poemas escolhidos revelam, está na origem da tão frequente alusão à poesia anglo-saxónica a propósito dos versos deste autor, a qual se tem prestado a alguns equívocos. Há, na sua poesia, muito mais uma experiência de leitor dos versos de Philip Larkin ou de Wallace Stevens, para dar dois exemplos, do que uma comunicação com o universo destes poemas. A verdadeira tentativa de comunicação de Pedro Mexia é, embora isto aconteça com maior evidência nos seus dois primeiros livros, quase sempre com poetas lusófonos como António Osório ou Ruy Belo: “Em memória de quem/ os versos? Dos outros/ seria cristão mas// mentira” (p. 21) ou “Vencido e convicto de vencido,/ sem voto, mas no temor e tremor/ compulsório perante este velho/ móvel dos avós, o oratório.” (p. 100). Por outras palavras, a inspiração anglo-saxónica é mais cerebral e ensaiada, enquanto a ligação a alguma da poesia portuguesa do século XX é mais íntima. Há, no fundo, uma impossibilidade de concretizar substancialmente a comunicação com estes poetas de língua inglesa para os quais Pedro Mexia frequentemente remete, porque socorrendo-se da visão binocular do quotidiano que tanto caracteriza, por exemplo, os textos de Larkin, os seus recursos não lhe permitem ultrapassar a pose ou a mera observação e, com isso, pôr alguma carne nos ossos dos poemas.

Convém, também por isto, referir que o envio para a poesia anglo-saxónica acaba por ser um subterfúgio para não se dizer algo a que o próprio poeta se tem furtado: a sua itinerância melancólica pelos espaços urbanos, os seus versos de flâneur e a sua auto-ironia são muito menos, digamos, eliotescos e muito mais portugueses, muito mais da sua geração, muito mais aproximáveis de uma certa poesia portuguesa bastante marcada e identificável da qual os seus textos de crítica literária têm tentado afastar-se, ficando a dúvida se o crítico se distancia realmente da sua própria poesia ou se permanece, relativamente a ela, numa redoma ilusória.

É, apesar disto, neste espaço dentro do qual se movem também grande parte dos seus textos de crónica, que surgem os momentos mais interessantes de “Menos por Menos”, quase sempre em poemas de pequeno fôlego: “Eu amo o teu gravador de chamadas./ Ele não me abandona/ e repete vezes sem conta/ a tua voz.” (p. 60). A atenção aos objectos do quotidiano ou a um referencial cultural certamente partilhado com os seus leitores, conjugada com as capacidades robustas da sua ironia, procuram estabelecer aí um ponto de conexão óptimo com o leitor. Quando os poemas se esboçam nestes limites, consegue esse ponto: “Havia espingardas: a do avô, caçador,/ uma de brinquedo, hoje sem coronha,/ a pressão de ar, apontada ao céu./ Espingardas. Todas elas mataram” (p. 36) ou “Infeliz quem, ao contrário/ de Ulisses, volte a casa/ e nem sequer um cão, nem/ um cão morto sequer, ladre.” (p. 57).

O que se disse não afasta, contudo, outros aspectos menos conseguidos da poesia de Pedro Mexia. Com algumas excepções – como, por exemplo, “Ofélia Tornou-se Lady Macbeth” (p. 103) –, o investimento lírico nos poemas está praticamente ausente. Havendo alguns versos de Pedro Mexia que, depois da leitura deste livro, nos ficam na cabeça, isto raramente acontece por terem uma sonoridade atraente ou com uma imagem sedutora. Mesmo num conceito idealmente lato e descomplexado de poesia, torna-se difícil imaginá-la a sobreviver num lugar assim. Também aqui, se pensarmos no rigor formal de Eliot ou no domínio rítmico de Larkin, o envio para esta poesia de língua inglesa peca por defeito. Por outro lado, este deficit lírico não é contrabalançado por um leque estilístico muito amplo: os recursos são na maioria dos poemas os mesmos e, por vezes, pecam pela sua utilização trapalhona: “Propedêutico, profilático./ Prepúcio./ Abraão tinha doutrina./ Antes Confúcio.” (p. 120) ou “Ouçam bem o meu maior segredo:/ aférese, síncope e apócope;/ prótese, epêntese e paragoge.” (p. 30). Este tipo de versos que procuram através das enumerações produzir algum efeito sonoro ou surpreender pelo humor, acabam por cair tantas vezes na inconsequência. Um texto intitulado “Poema de amor” é disto característico: “Alprozolam, domipramina, noradrenalina,/ monoamina, serotonina, fluexitina.” (p. 71). Piada tem... mas e poesia?

Não se trata de uma questão retórica, a perda da auréola do poeta que trouxe às suas costas uma razoável porção da modernidade tem sido erradamente entendida como uma licença para um exercício da poesia que redunda tantas vezes na inconsequência. Uma coisa é o verso partir do chão ou a ele ir parar, outra coisa bem diferente é o poeta contentar-se com a miopia de um alcance rasteiro. Talvez haja um espaço marcado e legítimo para esta poesia, mas sem uma panorâmica humanizável e sem um investimento sério na unidade de combate dos versos, a palavra, então é outra poesia… quando não é apenas uma piada ou uma anotação espirituosa.

Nota – três estrelas e meia

Pedro Mexia, Menos por Menos – Poemas escolhidos, D. Quixote, 2010.

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