No segmento introdutório de Tatuagem & Palimpsesto (Assírio & Alvim, 2010), Manuel Gusmão escreve que “[n]o seu movimento perpétuo, a poesia reinventa a sua origem ou o seu modo de chegar” (Manuel Gusmão, p. 9). À imagem sugerida e associada pelo poeta e ensaísta a este movimento há que reconhecer todo o seu poder criador: uma chama que, até morrer, “oscila e ondula segundo a vertical de uma árvore” (Manuel Gusmão, p. 9). Não deixa de ser curioso e, já agora, indicativo que Rosa Maria Martelo, também no segmento inicial do seu livro, A Forma Informe (Assírio & Alvim, 2010) invoque uma ideia particularmente próxima: “Faz parte do movimento construtivo da poesia um certo desencontro do poema com ele mesmo, isto é, o desajuste das suas próprias estruturas e a possibilidade de fazer «oscilar» (o termo é de Luiza Neto Jorge) os pressupostos que lhe serviram de ponto de partida” (Rosa Maria Martelo, p. 9).
Desse movimento estes autores dão-nos, em primeiro lugar, um movimento de leitura, descendente, cujo ritmo nos empurra em direcção ao fim da página e, também, em direcção ao chão, porque o poema, como sempre há-de lembrar Luiza Neto Jorge, ensina a cair. Neste último apartado, pode afirmar-se com segurança que tanto Manuel Gusmão como Rosa Maria Martelo, para regozijo dos seus leitores, fornecem através das suas interpretações inúmeros exemplos em que se manifesta o poder avassalador do texto poético no seu momento de leitura. Veja-se, a título de exemplo, em Manuel Gusmão, o fortíssimo Leiam Herberto Helder Ou o Poema Contínuo, “porque o que temos para ler é um livro fulgurante e estarrecedor” (Manuel Gusmão, p. 365) ou o ensaio O fio das sílabas, de Rosa Maria Martelo sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, em cujas páginas finais a ensaísta observa, numa leitura singularmente interessante, que “o que a poesia de Sophia nos mostra não é só a possibilidade de um caminho de justiça e de justeza, porque é muito mais do que isso. Ela diz-nos que a perfeita inteireza do ser é uma exigência humana e que [...] tal exigência ganha forma na travessia da imperfeição” (Rosa Maria Martelo, p. 33).
Este é, talvez, um movimento do próprio poema, seja ele expresso através da chama que, pela oscilação do ar, nunca permanece hirta ou pela tensão constante entre equilíbrio e desequilíbrio. Nesta perspectiva, e apesar do recurso a imagens tão diversas, há uma proximidade óbvia entre Tatuagem & Palimpsesto e A Forma Informe. O seu ponto de partida é, também, próximo: ambos os livros são maioritariamente compostos por ensaios anteriormente publicados pelos autores com a poesia portuguesa do século XX como pano de fundo, à excepção dos textos que Manuel Gusmão dedica ao poeta francês Arthur Rimbaud e a Cesário Verde e do ensaio O poema como amostra-de-mundo, de Rosa Maria Martelo, a propósito de João Cabral de Melo Neto, um poeta brasileiro. Coincidem, igualmente, em alguns dos seus vectores, podendo encontrar-se nos dois livros ensaios sobre Sophia, sobre Herberto Helder e sobre Carlos de Oliveira.
O movimento é também, há que afirmá-lo, um movimento para o poema. Aqui o trabalho do ensaísta deve colaborar activamente com o poeta. Imagine-se alguém que, sem qualquer outra fonte de luz, faz incidir uma vela sobre um objecto com múltiplas faces. O movimento da fonte de luz implica uma opção necessária entre iluminação para uma das faces do objecto e sombra e negrura para as restantes. Um poema de Luiza Neto Jorge citado por Rosa Maria Martelo fornece, deste processo, uma poderosa imagem: “Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo. / De só imaginá-lo a luz fulmina-me, / na outra face ainda é sombra” (Rosa Maria Martelo, p. 123). Do que aqui se fala é do importante labor de perspectivação que se deve exigir ao ensaísta no fornecimento de pistas e ferramentas de leitura e, por que não, de impossibilidade de leitura. A poesia tem a sua medida de entendimento e comunicabilidade e a sua medida de algo que, à falta de melhor palavra, se pode chamar de intuição.
Tatuagem & Palimpsesto é um livro com um ritmo de leitura substancialmente mais complicado de encontrar do que aquele que pauta A Forma Informe. Esta tendência é mais evidente na primeira parte, que nos apresenta uma estrutura de textos temporalmente sequenciados cujo tema condutor é o acto, o sentido e a condição do texto poético. Aqui, as intenções do autor e o seu domínio pleno da linguagem e do universo teórico da poesia, por mais dignos de reconhecimento que sejam, nem sempre conseguem evitar um resultado ligeiramente maçador para o leitor. Diferentemente, na segunda parte, em que Manuel Gusmão escreve sobre outros poetas – a grande maioria seus contemporâneos –, os textos pautam-se, quase sempre, pelos melhores momentos da parte antecedente. Nesta secção, deve ser dado destaque aos textos sobre Sophia – em que, curiosamente, a sua leitura se aproxima um pouco da de Rosa Maria Martelo – e sobre Fernando Assis Pacheco.
Em A Forma Informe, sem qualquer cedência à comodidade e a uma leitura de primeira camada, Rosa Maria Martelo consegue dar aos seus textos um ritmo célere e directo, ao mesmo tempo que confronta o leitor com referências literárias, comunicações de textos e perspectivas de leitura bastante profundas e imaginativas, mesmo quando trabalha sobre argumentos já anteriormente expostos por outros ensaístas e, até, por si em textos. O ensaio que a autora dedica à poesia de Herberto Helder, mais especificamente ao seu livro A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita, pode servir de exemplo. O mesmo acontece com Alegoria e autenticidade, em que Rosa Maria Martelo desenvolve, a propósito de textos poéticos e críticos de Manuel de Freitas, um tema já estudado num outro ensaio incluído na sua obra Vidro do Mesmo Vidro (Campo das Letras, 2007).
Há que reconhecer, apesar disto, que os propósitos ensaísticos enunciados por estes dois autores são absolutamente diferentes. Rosa Maria Martelo publica uma série de ensaios mais próximos de uma estrutura tradicional do texto académico. O seu núcleo de leituras é, também por isso, mais objectivável e de apreensão mais imediata. Pelo contrário, as principais valências dos textos de Manuel Gusmão encontram-se no poderio imagético a que frequentemente recorre, seja ao escrever sobre poesia ou sobre outros poetas, o que acaba por resultar em momentos sublimes de prosa não tão frequentes em A Forma Informe. Atente-se, por exemplo, naquilo que Manuel Gusmão escreve a propósito da poesia de Carlos de Oliveira: “é daquelas que nos obrigam a uma maneira de usar uma palavra que elas próprias usam, mas que caiu em desuso: a palavra beleza. Com os seus poemas, fazemos frequentemente a experiência daquilo a que chamávamos beleza. Que fulmina como um relâmpago, queima como uma ponta de gelo ou é já só um brilho restante à beira da exaustão, o fulgor do halo de uma coisa que vai extinguir-se” (Manuel Gusmão, p. 338).
Se algo se pode afirmar acerca destes dois livros de Manuel Gusmão e de Rosa Maria Martelo é que ambos revelam um conhecimento vasto, tanto do universo poético como do seu aparato teórico, conferindo aos versos e à sua leitura um trabalho notável ao nível ensaístico. O poema tem uma dimensão historiográfica, ainda que fragmentária, ao revelar-se como uma forma de dizer o mundo através das suas anotações. Tendo presente esta ideia, os dois autores oferecem sobre a poesia uma visão nada parcelar, convocando noções puramente literárias, mas, também, conceitos do léxico filosófico ou, até, do léxico histórico-político, que procuram captar toda a panóplia de intenções de leitura que os poetas – propositadamente ou não – deram aos seus versos. Acontece, porém, que A Forma Informe tem uma leitura mais sequencial e apreensível, sem que disso resulte qualquer prejuízo para o leitor ao nível da informação disponível e da elevação do discurso. Já Tatuagem & Palimpsesto revela, em alguns momentos, as dificuldades inerentes à segunda palavra do seu título: nem sempre é fácil ler o texto tapado pelo texto.
Desse movimento estes autores dão-nos, em primeiro lugar, um movimento de leitura, descendente, cujo ritmo nos empurra em direcção ao fim da página e, também, em direcção ao chão, porque o poema, como sempre há-de lembrar Luiza Neto Jorge, ensina a cair. Neste último apartado, pode afirmar-se com segurança que tanto Manuel Gusmão como Rosa Maria Martelo, para regozijo dos seus leitores, fornecem através das suas interpretações inúmeros exemplos em que se manifesta o poder avassalador do texto poético no seu momento de leitura. Veja-se, a título de exemplo, em Manuel Gusmão, o fortíssimo Leiam Herberto Helder Ou o Poema Contínuo, “porque o que temos para ler é um livro fulgurante e estarrecedor” (Manuel Gusmão, p. 365) ou o ensaio O fio das sílabas, de Rosa Maria Martelo sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, em cujas páginas finais a ensaísta observa, numa leitura singularmente interessante, que “o que a poesia de Sophia nos mostra não é só a possibilidade de um caminho de justiça e de justeza, porque é muito mais do que isso. Ela diz-nos que a perfeita inteireza do ser é uma exigência humana e que [...] tal exigência ganha forma na travessia da imperfeição” (Rosa Maria Martelo, p. 33).
Este é, talvez, um movimento do próprio poema, seja ele expresso através da chama que, pela oscilação do ar, nunca permanece hirta ou pela tensão constante entre equilíbrio e desequilíbrio. Nesta perspectiva, e apesar do recurso a imagens tão diversas, há uma proximidade óbvia entre Tatuagem & Palimpsesto e A Forma Informe. O seu ponto de partida é, também, próximo: ambos os livros são maioritariamente compostos por ensaios anteriormente publicados pelos autores com a poesia portuguesa do século XX como pano de fundo, à excepção dos textos que Manuel Gusmão dedica ao poeta francês Arthur Rimbaud e a Cesário Verde e do ensaio O poema como amostra-de-mundo, de Rosa Maria Martelo, a propósito de João Cabral de Melo Neto, um poeta brasileiro. Coincidem, igualmente, em alguns dos seus vectores, podendo encontrar-se nos dois livros ensaios sobre Sophia, sobre Herberto Helder e sobre Carlos de Oliveira.
O movimento é também, há que afirmá-lo, um movimento para o poema. Aqui o trabalho do ensaísta deve colaborar activamente com o poeta. Imagine-se alguém que, sem qualquer outra fonte de luz, faz incidir uma vela sobre um objecto com múltiplas faces. O movimento da fonte de luz implica uma opção necessária entre iluminação para uma das faces do objecto e sombra e negrura para as restantes. Um poema de Luiza Neto Jorge citado por Rosa Maria Martelo fornece, deste processo, uma poderosa imagem: “Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo. / De só imaginá-lo a luz fulmina-me, / na outra face ainda é sombra” (Rosa Maria Martelo, p. 123). Do que aqui se fala é do importante labor de perspectivação que se deve exigir ao ensaísta no fornecimento de pistas e ferramentas de leitura e, por que não, de impossibilidade de leitura. A poesia tem a sua medida de entendimento e comunicabilidade e a sua medida de algo que, à falta de melhor palavra, se pode chamar de intuição.
Tatuagem & Palimpsesto é um livro com um ritmo de leitura substancialmente mais complicado de encontrar do que aquele que pauta A Forma Informe. Esta tendência é mais evidente na primeira parte, que nos apresenta uma estrutura de textos temporalmente sequenciados cujo tema condutor é o acto, o sentido e a condição do texto poético. Aqui, as intenções do autor e o seu domínio pleno da linguagem e do universo teórico da poesia, por mais dignos de reconhecimento que sejam, nem sempre conseguem evitar um resultado ligeiramente maçador para o leitor. Diferentemente, na segunda parte, em que Manuel Gusmão escreve sobre outros poetas – a grande maioria seus contemporâneos –, os textos pautam-se, quase sempre, pelos melhores momentos da parte antecedente. Nesta secção, deve ser dado destaque aos textos sobre Sophia – em que, curiosamente, a sua leitura se aproxima um pouco da de Rosa Maria Martelo – e sobre Fernando Assis Pacheco.
Em A Forma Informe, sem qualquer cedência à comodidade e a uma leitura de primeira camada, Rosa Maria Martelo consegue dar aos seus textos um ritmo célere e directo, ao mesmo tempo que confronta o leitor com referências literárias, comunicações de textos e perspectivas de leitura bastante profundas e imaginativas, mesmo quando trabalha sobre argumentos já anteriormente expostos por outros ensaístas e, até, por si em textos. O ensaio que a autora dedica à poesia de Herberto Helder, mais especificamente ao seu livro A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita, pode servir de exemplo. O mesmo acontece com Alegoria e autenticidade, em que Rosa Maria Martelo desenvolve, a propósito de textos poéticos e críticos de Manuel de Freitas, um tema já estudado num outro ensaio incluído na sua obra Vidro do Mesmo Vidro (Campo das Letras, 2007).
Há que reconhecer, apesar disto, que os propósitos ensaísticos enunciados por estes dois autores são absolutamente diferentes. Rosa Maria Martelo publica uma série de ensaios mais próximos de uma estrutura tradicional do texto académico. O seu núcleo de leituras é, também por isso, mais objectivável e de apreensão mais imediata. Pelo contrário, as principais valências dos textos de Manuel Gusmão encontram-se no poderio imagético a que frequentemente recorre, seja ao escrever sobre poesia ou sobre outros poetas, o que acaba por resultar em momentos sublimes de prosa não tão frequentes em A Forma Informe. Atente-se, por exemplo, naquilo que Manuel Gusmão escreve a propósito da poesia de Carlos de Oliveira: “é daquelas que nos obrigam a uma maneira de usar uma palavra que elas próprias usam, mas que caiu em desuso: a palavra beleza. Com os seus poemas, fazemos frequentemente a experiência daquilo a que chamávamos beleza. Que fulmina como um relâmpago, queima como uma ponta de gelo ou é já só um brilho restante à beira da exaustão, o fulgor do halo de uma coisa que vai extinguir-se” (Manuel Gusmão, p. 338).
Se algo se pode afirmar acerca destes dois livros de Manuel Gusmão e de Rosa Maria Martelo é que ambos revelam um conhecimento vasto, tanto do universo poético como do seu aparato teórico, conferindo aos versos e à sua leitura um trabalho notável ao nível ensaístico. O poema tem uma dimensão historiográfica, ainda que fragmentária, ao revelar-se como uma forma de dizer o mundo através das suas anotações. Tendo presente esta ideia, os dois autores oferecem sobre a poesia uma visão nada parcelar, convocando noções puramente literárias, mas, também, conceitos do léxico filosófico ou, até, do léxico histórico-político, que procuram captar toda a panóplia de intenções de leitura que os poetas – propositadamente ou não – deram aos seus versos. Acontece, porém, que A Forma Informe tem uma leitura mais sequencial e apreensível, sem que disso resulte qualquer prejuízo para o leitor ao nível da informação disponível e da elevação do discurso. Já Tatuagem & Palimpsesto revela, em alguns momentos, as dificuldades inerentes à segunda palavra do seu título: nem sempre é fácil ler o texto tapado pelo texto.
*Texto publicado no Ípsilon de 18 de Março
Sem comentários:
Enviar um comentário