De cujos ossos ocos a Morte já cortava as suas flautas,
Em cujos tendões a Morte já passava o seu arco -
Os nossos corpos ainda gemem
Com a sua música mutilada.
Nós que nos salvámos,
Ainda pendem os baraços torcidos para os nossos pescoços
Em frente de nós no ar azul -
As ampulhetas ainda se enchem com o nosso sangue gotejante.
Nós que nos salvámos,
Ainda em nós roem os vermes do medo.
A nossa estrela está enterrada no pó.
Nós que nos salvámos
Vos pedimos:
Mostrai-nos devagar o vosso Sol.
Levai-nos a passo de estrela em estrela.
Deixai-nos aprender devagar de novo a vida.
De contrário poderia a canção dum pássaro,
O encher do balde no poço
Fazer rebentar a nossa dor mal selada
E arrastar-nos em espuma -
Nós vos pedimos:
Não nos mostreis ainda um cão que morde -
Poderia ser, poderia ser
Que nos desfizéssemos em pó -
Perante os vossos olhos em pó nos desfizéssemos.
O que é que aguenta ainda inteira a nossa teia?
Nós que nos tornámos sem hálito,
Cuja alma fugiu para Ele da meia-noite
Muito antes de nos terem salvado o corpo
Na arca do momento.
Nós que nos salvámos,
Apertamo-vos a mão,
Reconhecemos o vosso olhar -
Mas só e ainda nos aguenta a despedida,
A despedida no pó
Nos aguenta convosco.
- Nelly Sachs
(tradução de Paulo Quintela)
in Poemas, Portugália
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