-Em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento, do que expor o melhor programa de entreajuda social.
Essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias.
É isso a transfiguração poética.
O poeta mostra a sua humanidade por vias próprias, que frequentemente são inumanidade (aparente e momentânea, esta). Mesmo anti-social ou a-social, ele pode ser social.
Para evitar a contradição relativamente a nomes actuais, prefiro escolher o exemplo de um artista criador, de um género muito menos puro que a Poesia, mas em relação ao qual há unanimidade de simpatia: Charlie Chaplin. Criou um tipo de vagabundo, chamado Charlot, nitidamente imoral. Pontapés, rasteiras aos polícias sempre que os encontra; escarnece de todas as autoridades, não trabalha. Se trabalha, parte tudo, engana o patrão, não respeita a mulher de outrem, é rapinante quando a ocasião se apresenta, é um não-valor social e, contudo, ele teve uma tal influência, de tal modo reconciliou pessoas com a vida que o podíamos considerar um dos benfeitores da nossa época.
Não tenhamos pontos de vista professorais sobre arte. Porque é que Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, personagens muito pouco recomendáveis do seu tempo, representam não obstante tantas coisas para nós e são de alguma maneira benfeitores?
Não seguramente pela sua moral, mas por terem conferido um novo impulso vital, uma nova consciência.
Por isso, em vez de os comparar a pregadores espalhando a boa ou a má nova, há que compará-los ao primeiro homem que inventou o fogo. Foi um bem, foi um mal? Não sei. Foi um novo começo para a humanidade. Uma sucessão de novos começos faz uma civilização. É isso também o que o poeta mais deseja, um novo começo, uma vitória sobre a inércia, sobre a sua, sobre a da época, sobre o entorpecimento sem fim dos reaccionários.
Vemos assim que a poesia, mais do que um ensinamento, mais até do que um encantamento, uma sedução, é uma das formas exorcizantes do pensamento. Pelo seu mecanismo de compensação, liberta o homem da atmosfera viciada, deixa respirar aquele que asfixiava. Transforma um estado de alma intolerável noutro satisfatório. É, pois, social, mas de uma forma mais complexa e indirecta do que se diz.
Sem o parecer, respondo desta maneira à pergunta: «Qual a finalidade da poesia?» ─ A de nos tornar habitável o inabitável, respirável o irrespirável.- Henri Michaux
(tradução Rui Caeiro)
in Nós dois ainda, Bonecos Rebeldes
quinta-feira, fevereiro 10, 2011
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