Poesia, Cristovam Pavia, 2010
Parecia talhado para o esquecimento, este fazer. Tem quase trinta anos, a última edição de Cristovam Pavia, que, em vida, apenas vira publicado o livro 35 Poemas, de 1959. A sua produção, precoce, ficaria essencialmente disseminada em revistas, ou permaneceria inédita – dela se resgatam aqui oito poemas. O diagnóstico de Joaquim Manuel Magalhães (in Os Dois Crepúsculos) mantém total pertinência: «Um dos esquecidos dentre os poetas portugueses do pós-guerra.» Uma poesia, como esta, tão pouco afeita ao caminho mais amplamente rasgado de uma modernidade que grite, que lugar poderá ter, num panorama da poesia de cá? Por certo, marginal, longe da vigia mais atenta – «Sem dúvida», diz ainda J.M.M., «assim é por a sua poesia ser, o mais fundamente, anti-moderna. Ignora o rocambole da experimentação sintáctica, do desregramento imaginístico». Resta reler a poesia de Pavia. A dúbia simpleza do seu dizer recupera a toada musical de um lirismo que tendemos a dizer tradicional. Pela cadência, a espaços linear, melopeia bastas vezes dolente, na sua queda breve, mercê de um cuidado rítmico, visível, por exemplo, nas frequentes elisões e na respiração comedida e temperada do metro, como nas suas opções estilísticas e vocabulares. Há algo de cantilena de embalar, de canto fúnebre, enganadoramente pueril, nestas cadências – «Grão de areia, remo esguio…/ Minha infância reavida// Tão sossegada à janela/ Prostitutinha de branco…» (p.175)
É sensível a herança de um Campos, na sua letargia auto-imune – «Dizem que não tenho idade para estar cansado» (p.67) –, na lassa disposição de nem ler o livro sepultado na sua cabeceira – «E nem leio o meu Baudelaire» (id.) –, a repercussão de um Sá-Carneiro, um Régio – «Lá em baixo há manchas douradas,/ Nuvens em fogo» (p.72). Mas também a memória transfiguradora de tradições mais recuadas, como a medieval – «Ó ondas do mar de Vigo/ Ó girassóis de Alcoentre» (p.194).
Há, em certos pontos, um arrojo metafórico – «Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas/ Com os olhos fitos e os peitos esmagados» (p.57) –, uma força imagética – «Tudo colas e vinagres sobre mim» (p.127) –, que marcam de forma proveitosa os proventos desta poesia. A derrisão – «Shelley e Keats/ Estão em Roma/ Fazem manguites.» (p.197) –, a auto-depreciação – «Escrevo em papel de retrete/ Os meus ditos poemáticos» (p.198) – formam o contraponto forte da placidez versejada de Pavia. Note-se, ainda, que, a par das florações mais rentes a um certo uso tradicional dos modos da poesia, a presente reunião recolhe um conjunto de esparsos, já coligidos na edição da Moraes – além de poemas que conhecem agora a primeira publicação –, em que assoma algum desvirtuamento de processos e dissolução de formas e modos que poderia ter conduzido a uma inflexão eventualmente proveitosa.
- Hugo Pinto Santos
[Versão ampliada de um texto originalmente publicado no «Actual», Expresso, 30 de Outubro, 2010]
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