domingo, novembro 07, 2010

A Escrita, Paulo da Costa Domingos &etc, 2010

Aqui, o cuidar da palavra e o rigor da escrita (marcado no emblema fugitivo dos fac-símiles autógrafos de Paulo da Costa Domingos) não são descurados em função do desgosto e da raiva – «É insano/ calar em silêncio» (p.31). Não será talvez por acaso que nos lembramos do Juvenal de «Deverei eu sempre ouvir, sem retaliar?» Contrariando uma tendência arreigada nas práticas consuetudinárias, esta poesia fortalece-se por entre o aumento da temperatura emocional – «Cadáveres/ de chapéus-de-chuva retorciam-se/ no empedrado; e os cães uivavam/ manhã cedo/ porque têm sede e os donos,/ derreados, dormiam: baixinho.» (p.31) –, rés da praga e do lixo, vizinha da náusea de uma brutal modernidade – «a pensão da falsa invalidez, a metadona,/ vestuário usado embebido no perfume// da usura e no grito bipolar do tédio» (p.23). Se toda a poesia política, como queria Goethe, é necessariamente má poesia, poderá ser fútil discutir, mas, por uma atenção impenitente ao concreto e ao que, nele, revolta e desagrada, o chamamento da torpeza e da injustiça é trespassado por estes versos – «Virulenta é a crise/ de programada que foi/ e orquestrada/ para um tempo de expurgo e razia,/ uma limpeza nos locais de trabalho.» (p.42) –, produzindo alguma da poesia mais poderosa e mais inteligentemente lírica dos últimos tempos.

Não são bem memórias, estes versos; não o são, de todo. A memória é como o rastilho para mais poderosa, bem mais letal, pólvora – uma leitura impiedosa e denodada, rigorosíssima, das coisas e dos seres – «Jamais tão alto e tão perto/ do Sol se voou e tão distante/ do cerne de todas as quedas.» (p.41). A evocação de um passado a que se chega «subindo às escamas das palmeiras/ do passado/ a muitos mil quilómetros de distância» (como se lia na reunião Carmina) não se produz em detrimento da perda de tensão, como em tantas luminárias – «Na Idade do Bibe/ já um íntimo teclado/ piano se formava por baixo/ dos tampos das carteiras/ em louvor de alguma mestra/ mais descuidada e/ disponível à linha melódica,/ ao contorno erótico/ dos problemas. Na idade/ em que entornados os tinteiros/ nos escorriam pelas pernas.» (p.7) Antes se recua no tempo – «Depressa, consumido todo o prodígio/ que foi o despautério da infância/ num mundo somente dado ao trabalho,/ sobreveio um dia de cão/ cheio de abuso e maldades…» (p.8) – com uma poesia que se abeira dos incandescentes materiais do lembrado para os transformar em versos de inteira justeza, num cuidado de timbre e sentido que vai sendo raro – «o ardor não escolhe idades» (p.8). De resto, esta poesia repete a sua disposição de se conter – «Mais não digo,/ a estupidez e a maldade escrevem-se/ em papel contínuo, e o poema vai longo/ e, depois, ninguém o lê.» (p.26).

Eis, portanto, uma poesia, mais que tudo, consciente, uma poesia em que alguém está a par de que se vive «Aprisionado, sim,/ num istmo entre istmos num/ irrevogável ditado universal.» (p.37). Uma escrita que não cairá no narcótico versejar das cortinas de fumo em que se entretém, ainda, muito poeta, sabedora como é de uma impositiva «subvivência crónica» (p.53). Se põe em cena, em quadros que o não são – antes se erguem como flagrantes rasgões do que possa ser um quotidiano que nos sobra –, fá-lo com tal dignidade de expressão que o que está em causa é menos uma representação apenas literária e mais o canto dorido da própria vida – «Até lá, muito semáforo existe/ onde esmolar» (p.29). «O fim da arte é o Canto», se lia, em anterior registo. Por esse mesmo caminho, ficam de fora os que não sabem, não querem ou não podem saber, o cisco de mundo em que nos é dado durar – «o deserto inominável sem fuga, eis a/ actual actividade dos intelectuais,/ coitados… Tudo, mas tudo, nos cansa,/ principalmente espúrias apostas/ no promissor cavalo errado.» (p.37). Do mesmo golpe, esta poesia – não poderia deixar de ser – é uma rígida instância de contra-poder. Felizmente, porém – para ela, mas, sobretudo, para quem a lê –, não cola cartazes, nem passa panfletos: apenas, sibilina, exprime o mundo que nos calha, com o rigor de uma inscrição, dura e derradeira, abertura para o devir – «A fina película que aparta/ da Igreja o Estado, propícia/ aos líquidos conteúdos, ao alívio/ do tenso músculo, às/ ideias feitas, rompeu/ e o verbo se fez carne/ e a carne, apetecível, encheu-se de um pó/ e friccionou-se com/ os santos óleos, e…/ a Humanidade é aquilo que hoje sabemos.» (p.40) O que possa ser o real concreto é, mais do que tratado poeticamente, interpelado, posto em causa, nas suas incidências e fugas – «Tanto, que o real se afasta, fantasmagoria, diferido, para jamais/ voltar à ceia dos indivíduos, perdidos/ em definitivo na urbana floresta.» (p.41) A sua presença, nos versos, rejeita a liturgia, repudia a cega concreção: é crítica, dinâmica, transformadora – «Mas o lençol/ de urina do real tem/ uma lucidez doo instante/ seu único optimismo.» (p.54). Mostra-se, também aí, cônscia da lassitude desse real, da sua falibilidade, «quando o real se pauta pelos tablóides,/ quando o trambolhão está aí» (p.42).

Uma nota, marginal (?), para relevar o suporte gráfico, da responsabilidade de P.C.D., pela elegante sobriedade de tipos, caracteres e de composição, apoiada pelo registo fac-similar dos versos.

- Hugo Pinto Santos

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