domingo, outubro 24, 2010

Uma canção para Lhasa de Sela*

Não tem sido comum, na poesia portuguesa mais recente, um livro ter no seu centro uma história tão honesta e tão fortemente impressa no seu propósito, contra o imediatismo a que a sua autora, Renata Correia Botelho (n. 1977), se poderia muito bem arriscar ao publicá-lo apenas nove meses depois da morte de Lhasa de Sela – cantora nascida nos Estados Unidos –, o acontecimento que serviu de ignição para o livro mais recente da poetisa natural de S. Miguel, Açores: Small Song (Averno, 2010).
Este é o segundo volume de poemas de Renata a ser publicado, no espaço de um ano, na editora de Manuel de Freitas e Inês Dias. A sua estreia em livro, na Averno e em edições de maior tiragem e distribuição, foi Um Circo no Nevoeiro (2009), com ilustrações de Luís Manuel Gaspar. Anteriormente, a autora já colaborara com a mesma editora, através das suas participações com poemas e, num dos casos, um conto, nos números 2, 6 e 12 da revista Telhados de Vidro, e já publicara outros dois livros: Avulsos, por causa (primeiro em edição privada e depois em separata da revista Magma número zero, 2005) e 21 Haiku com Asas, Urbano e Cabras (edição da Galeria 111, 2008), este último em parceria com Urbano, o ilustrador de Small Song, e Emanuel Jorge Botelho, pai da autora e, também, poeta com obra publicada.
Renata Correia Botelho vive em S. Miguel, Açores, o que condenou à partida a possibilidade de a entrevistar pessoalmente. O recurso à troca de e-mails e à conversa por telefone foi a solução óbvia e, curiosamente, aquela que mais se aproxima à forma primordial de participação da autora no meio literário português. Nestes tempos de correios electrónicos e blogues, Lisboa e S. Miguel podem ser exactamente a mesma cidade, tudo depende daquilo que o poeta esteja disposto a diligenciar nesse sentido. Prova disso mesmo é notoriedade que a poesia de Renata conseguiu alcançar no quadro dos poetas mais novos, desmistificando profundamente as supostas dificuldades insuperáveis de publicação e divulgação para aqueles que vivem fora dos dois grandes centros da cultura literária portuguesa, Lisboa e Porto.
Qual é, então, a perspectiva que Renata Correia Botelho tem sobre a sua situação periférica, a sua insularidade e o impacto que isto tem na sua produção poética? A sua resposta acaba por ser mais ou menos expectável: “apesar de todas as condicionantes, como ter de viajar imenso para matar saudades de um quadro ou de um rio, viver nos Açores, longe do mundo mas perto do céu, é uma bênção.”. Depois, recordando Cecília Meireles, diz que “os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros”. Árvores e pássaros povoam o vocabulário deste livro. A poesia portuguesa que a precedeu tratou de carregar de significados e referencias estas duas palavras. Basta-nos pensar em Eugénio de Andrade. A juventude da autora, felizmente, não a impede de construir, em pé de igualdade com as figuras tutelares, um espaço próprio em redor destas palavras: “os pássaros morrem sempre/ de noite, e os sinos tocam/ os seus nomes pela madrugada.” ou “fingindo a vida e logrando/ a morte, recolhendo à terra,/ passarinho, sem nada temer,// recolhendo à terra.”. Ainda em relação aos Açores, Renata refere que a sua poesia se constrói, numa primeira camada, no seu contacto intenso com a natureza e a sua ilha funciona, aí, mais como uma montra privilegiada do que como uma limitação.
Mas regresse-se à história deste livro. O ponto de viragem de Small Song e, correspondentemente, da sua própria estrutura, foi a tarde do primeiro dia deste ano de 2010, data da morte de Lhasa de Sela, encapsulada num dos poemas centrais do livro, intitulado de Rising: “hoje é início de janeiro/mas só consigo escrevê-lo/dois meses depois: morreu/a cantora Lhasa de Sela, / li no canto do ecrã,/ assim, em letra corrida,/ ainda a manhã mal tinha/ chegado às mãos.”. Foi este “acontecimento devastador”, confessa Renata Correia Botelho, marcado pela perda de alguém que lhe era tão próximo, que acelerou tudo, que tornou urgente a conclusão de um livro que era, até então, pouco mais que uma “ideia vaga” contida em poemas escritos e, em alguns casos, publicados anteriormente. E Rising, o poema atrás citado, foi o primeiro nessa viragem e aquele “que acendeu todos os outros, como uma vela”.
Há, nas palavras da autora, a permanente sugestão de uma certa co-autoria deste livro, a qual se passa a dois níveis. No primeiro deles comanda a voz de Lhasa que, pela sua ausência, fez da premência de uma memória a necessidade de um livro. No segundo nível intervém a irmã de Lhasa, Sky de Sela, um dos destinatários da dedicatória do livro. Após a morte da cantora e motivada pela necessidade “de a sentir para além das canções”, o contacto postal com a irmã, Sky de Sela, pareceu a Renata uma forma óbvia de manter a sua ligação com a voz da cantora que, durante tanto tempo, a acompanhara à distância. Quando os poemas começaram a surgir, pareceu-lhe que estes apenas fariam sentido se Sky os pudesse ler, pelo que se dedicou afincadamente à tarefa de traduzir o livro para francês. A passagem dos poemas para outra língua e, também, a leitura atenta da irmã de Lhasa colaboraram para que o livro nascesse uma outra vez: “foi aí que o livro começou a existir realmente – quando senti que, através da Sky, tinha a Lhasa ali tão perto, a mostrar a cada verso o seu verdadeiro caminho.”.
Não se pode deixar de notar que esta história ultrapassa a mera curiosidade, cedendo ao livro um coração que lhe permite escapar, ao mesmo tempo, à artificialidade de muitas construções narrativas que servem de base a livros de poesia, ao imediatismo tão à moda do século XXI e à pura pornografia da morte. Quando muitos elogios se atrevem a recair sobre poetas que cultivam as curiosidades ou em que alguns poetas parecem esperar apenas que apareça um corpo para depositar naquele poema da morte há já muito escrito, o livro de Renata Correia Botelho, pela sua honestidade e pela forma como aborda a morte de Lhasa, a partir daquilo que dela permanece vivo – a família e as músicas – não é apenas mais uma adição a essa biblioteca negra que precede qualquer poeta e torna-se, por isso, digno de destaque.
É preciso destacar outro ponto, tão marcante em Small Song como em obras anteriores de Renata Correia Botelho: a interacção entre os poemas, as ilustrações que lhes servem de apoio e o aspecto visual dos livros. A propósito da composição geral dos seus livros, Renata destaca a liberdade criativa de que tem podido gozar na escolha do artista com quem quer partilhar o trabalho, das ilustrações, do formato e, até, do papel e do tipo de letra. Todos estes detalhes fazem, para ela, parte da alma dos seus livros, principalmente as ilustrações. Confessa-se fascinada pelo processo de pintar um quadro: “as várias camadas de tinta, as cores que se sobrepõem para criar matizes, esse aspecto implacável da primeira pincelada sobre a tela. Acho que escrever não é diferente e compor música também não deve ser.”.
Num livro que coloca como primeira urgência a memória de Lhasa de Sela, que lugar ocupam as suas músicas ou, melhor, que lugar ocupa a música? “Os meus livros sempre tiveram a sua música imaginária, aquela que oiço fora e dentro”, assim nos apresenta a autora esta intimidade do seu processo criativo, “As canções de Lhasa foram, desde o início, a presença mais forte. Porque sempre foi muito claro, na minha maneira de habitar o mundo, que há as músicas de que gosto, há aquelas que até amo, e depois há a Lhasa”.
O corpo e a memória encontram-se em rota de colisão, um dia embatem e, depois, o seu caminho nunca mais se há-de voltar a cruzar: “eu nem me atrevera a falar disso:// da morte, da solidão a abater-se,/ como uma longa noite,/ quando sabemos que uma voz não volta/ a coincidir com o seu rosto.”. Esta é uma das grandes tragédias da nossa condição, tão exaltada quanto mutilada por demasiadas histórias, imagens e músicas. As melhores histórias e imagens, as melhores músicas acabam, quase sempre, por disparar na nossa direcção os destroços desta inevitabilidade. É por isso que, como escreve Renata Correia Botelho, “há músicas que só podemos/ ouvir de joelhos.”.

*Texto publicado no Ípsilon de 22 de Outubro

1 comentário:

bitsounds disse...

a música e a morte de Lhasa como inspiração
ou um sentida homenagem