Um dos versos iniciais do poema The Rival, de Sylvia Plath, cumpriria eficientemente a função de epígrafe aos melhores momentos de Small Song (Averno, 2010): “you leave the same impression of something beautiful, but annihilating”. O livro tem, neste sentido, uma aproximação mais óbvia a Avulsos, por causa (2005) do que a Um Circo no Nevoeiro (Averno, 2009). A principal diferença entre Small Song e Avulsos, por causa, é que, enquanto a separata da revista Magma recorria, com maior ênfase, à primeira parte do verso de Sylvia Plath, este livro mais recente reparte a beleza (“pela manhã, junto as pétalas tenras/caídas no lençol, e rezo baixinho,/com os pardais um verso branco.”) e a aniquilação (“oiço ainda os corpos a vincar a noite,/um campo minado de corações tristes/explodindo o rosto na parede”) numa tensão substancialmente mais ponderada.
A morte – e não só a de Lhasa de Sela, embora esta seja o detonador do livro – é uma das notas repetidas ao longo de Small Song. Surge nos seus traços mais intuitivos e, por isso, mais espectáveis, como a ausência (“sabemos que uma voz não volta/a coincidir com o seu rosto”) ou a sua aproximação no corpo (“o tempo, espelho tosco com que/fintamos a morte, apontado para nós/como a lança do arqueiro;/hesita, por um instante apenas,/para depois avançar, implacável/ e sem retorno, na nossa direcção.”). Neste aspecto, Renata Correia Botelho não consegue escapar de um espaço bastante reconhecível na poesia portuguesa mais recente. Por vezes, no entanto, consegue surpreender em detalhes mais inesperados, com anotações que denotam, de igual forma, uma sensibilidade individualizadora e um investimento na reflexão, como, por exemplo, no momento em que reconhece, com uma ideia simples mas desarmante, o impacto da morte na capacidade de a expressarmos num tempo exacto: “é o que acontece à alma,/em dias destes, quando janeiro/ só se pode dizer em março,/ sem primavera.”.
Num livro dividido em duas partes (A minha rua e O anjo errante), os versos que se acabaram de citar abrem a sua segunda parte, ao mesmo tempo que provocam uma viragem que redirecciona o livro para o seu verdadeiro aspecto triunfal. Até Rising, o poema que contém esses versos, os textos correm o risco de ou parecem fungíveis ou não serem mais do que aproximações àquilo que a segunda parte melhor consegue expressar. Excepcionam-se, porém, alguns versos em que a especial capacidade da autora para conjugar efeitos líricos bem executados com observações delicadas dos detalhes aparece de forma mais evidente ao leitor: “fui fechando atrás de mim/as alamedas de Manderley,/ e saí para comprar um magnólia” ou “dizias-me, com um cigarro/ e um rosto por acender,/ como quem se prepara/para um golpe de estado.”.
Reeditando o enredo com que se iniciou este texto, a autora escolheu uma citação de Jorge Luis Borges para inaugurar a primeira parte do livro: “Yo soy el único espectador de esta calle;/ si dejara de verla se moriría”. É raro a opção por uma epígrafe conseguir captar tão profundamente a força do livro que dela se serve. RCB, embora não seja a única espectadora dos pequenos detalhes que por aqui vão surgindo, mostra-se capaz de notar e encadear, de uma forma tão singular e aguda, os terramotos que, por vezes, abalam o quotidiano de cada um e que se manifestam em factos tão comuns, como a perda de uma referência que nos habituámos a ter como garantida. Sem Small Song, é bem provável que grande parte desses detalhes não se votassem a outra coisa que à ausência.
Nota: 4 estrelas
A morte – e não só a de Lhasa de Sela, embora esta seja o detonador do livro – é uma das notas repetidas ao longo de Small Song. Surge nos seus traços mais intuitivos e, por isso, mais espectáveis, como a ausência (“sabemos que uma voz não volta/a coincidir com o seu rosto”) ou a sua aproximação no corpo (“o tempo, espelho tosco com que/fintamos a morte, apontado para nós/como a lança do arqueiro;/hesita, por um instante apenas,/para depois avançar, implacável/ e sem retorno, na nossa direcção.”). Neste aspecto, Renata Correia Botelho não consegue escapar de um espaço bastante reconhecível na poesia portuguesa mais recente. Por vezes, no entanto, consegue surpreender em detalhes mais inesperados, com anotações que denotam, de igual forma, uma sensibilidade individualizadora e um investimento na reflexão, como, por exemplo, no momento em que reconhece, com uma ideia simples mas desarmante, o impacto da morte na capacidade de a expressarmos num tempo exacto: “é o que acontece à alma,/em dias destes, quando janeiro/ só se pode dizer em março,/ sem primavera.”.
Num livro dividido em duas partes (A minha rua e O anjo errante), os versos que se acabaram de citar abrem a sua segunda parte, ao mesmo tempo que provocam uma viragem que redirecciona o livro para o seu verdadeiro aspecto triunfal. Até Rising, o poema que contém esses versos, os textos correm o risco de ou parecem fungíveis ou não serem mais do que aproximações àquilo que a segunda parte melhor consegue expressar. Excepcionam-se, porém, alguns versos em que a especial capacidade da autora para conjugar efeitos líricos bem executados com observações delicadas dos detalhes aparece de forma mais evidente ao leitor: “fui fechando atrás de mim/as alamedas de Manderley,/ e saí para comprar um magnólia” ou “dizias-me, com um cigarro/ e um rosto por acender,/ como quem se prepara/para um golpe de estado.”.
Reeditando o enredo com que se iniciou este texto, a autora escolheu uma citação de Jorge Luis Borges para inaugurar a primeira parte do livro: “Yo soy el único espectador de esta calle;/ si dejara de verla se moriría”. É raro a opção por uma epígrafe conseguir captar tão profundamente a força do livro que dela se serve. RCB, embora não seja a única espectadora dos pequenos detalhes que por aqui vão surgindo, mostra-se capaz de notar e encadear, de uma forma tão singular e aguda, os terramotos que, por vezes, abalam o quotidiano de cada um e que se manifestam em factos tão comuns, como a perda de uma referência que nos habituámos a ter como garantida. Sem Small Song, é bem provável que grande parte desses detalhes não se votassem a outra coisa que à ausência.
Nota: 4 estrelas
*Crítica publicada no Ípsilon de 22 de Outubro
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