sexta-feira, outubro 22, 2010

Princípio do escuro

Acordei hoje como se fosse natural-
mente necessário ter o comprimento
do teu corpo na minha cama e estranhei
que não me abraçasses, nem preenchesse
o encaixe da tua pélvis
as minhas nádegas, a tua mão
sobre o meu monte, os teus joelhos
encostados à dobra onde os meus flectem

Vês daí como tudo ainda e sempre
treme continuamente, e a descompasso
do real, todos os dias tenho calores
de imaginação, trabalho a libido
do cansaço, se fecho os olhos não durmo,
encho-me, ao invés, de fricções. Depois
no outro plano, já sentiste, custa-me
estar presente: das consecutivas vezes
que nos tocámos na boca, estudei os beijos
como uma alegoria embaraçosa:
tudo sob o comando diferido
da cabeça, com tensão mais que tesão,
a minha língua esgrimia a tua, quase
nada clamava ou humedecia, talvez
exceptuando um latido pequeno de amor
a pingar com irritação, não sei,
e além do mais haveria a indagar
se são de facto compatíveis nossas
espécies, se nisso há inevitabilidade,
ou onde preciso das tuas carícias
nos anéis das cervicais ou dedos
na pele ou o princípio do escuro
a partir do perímetro da cintura.

- Margarida Vale de Gato
in O prisma das muitas cores, Labirinto

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