sexta-feira, setembro 10, 2010

Inventário

Há que encostar uma escada para subir. Falta-lhe um degrau.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Há o cheiro a humidade.
O entardecer entra pela casa em lâminas de luz.
As vigas do céu raso estão próximas e o piso está vencido.
Ninguém ousa pôr-se de pé.
Há um velho divã desengonçado.
Há umas ferramentas inúteis.
Ali está a cadeira de rodas do morto.
Há um pé de candeeiro.
Há uma rede de dormir paraguaia, com borlas, a desfiar-se.
Há utensílios e papéis.
Há uma estampa do estado-maior de Aparicio Saravia.
Há um velho grelhador a carvão.
Há um relógio de tempo parado, com o pêndulo partido.
Há uma moldura desdourada, sem tela.
Há um tabuleiro de cartão e umas peças desemparelhadas.
Há uma braseira de dois pés.
Há uma arca de cabedal.
Há um exemplar bolorento do Livro dos Mártires de Foxe, em intrincada escrita gótica.
Há uma fotografia que já pode ser de qualquer pessoa.
Há uma pele já gasta que foi de tigre.
Há uma chave que perdeu a sua porta.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de erguer este monumento,
Sem dúvida menos duradouro que o bronze e que se confunde com elas.

- Jorge Luis Borges
(in A Rosa Profunda, 1975 - incluído em
Obras Completas III, editorial Teorema, 1998
tradução de Fernando Pinto do Amaral)

1 comentário:

blimunda disse...

http://not-a-love-song.blogspot.com/