quarta-feira, setembro 29, 2010



CONTAM QUE NASCI COBERTO
DE UMA SÓLIDA CAMADA DE GELO

Oiçam-me com o meu idioma de poema

Carlos Edmundo de Ory

Contam que nasci coberto de uma sólida camada de gelo,
quase mineral; que tiveram que me descongelar à pressa
debaixo da torneira da cozinha para que rebentasse em choro,
que tenho corpo de pirágua dobrada pelo relento desde aí.
Assim, dentro do bosque, o mistério tem a sombra verde:
falo um idioma de lâmina ferida pela fruta mais doce
e o meu corpo é uma jarra se a sede me toma para beber.
Quando cheiro a cintura da rosa a minha cabeça é um jardim,
mas quebro-me se piso uma folha seca ao fundo da tarde.
Entre os livros guardo penas de estranhos pássaros,
dias que perdi debaixo das suas noites, radiografias de anjos.
Tenho matilhas de silêncio a dormir no leito dos meus cabelos
e guardo arqueiros no tacto branco das minhas mãos:
sei esticar o corpo dos dias, amá-los se me deixam.
Esporadicamente escrevo o quanto não sei de mim, levanto um pombal
para cada palavra, apalpo o duro âmbar do crepúsculo
onde durmo como o insecto que aguarda a sua ressurreição.

- Jesús Jiménez Domínguez
in Fundido en negro, DVD Ediciones

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