O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas, neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas em volta, no meio da lama? Há quem se aproxime para o ajudar, quem apanhe as imagens mais sujas e lhas devolva limpando-as com a ponta do casaco. Mas, uma a uma, ele volta a colocá-las onde estavam, tão meticulosamente como se as dispusesse num desses tabuleiros que usa para a revelação dos negativos. E, esfregando-as contra as pedras da rua, desenha mais sulcos no papel fotográfico - riscos, manchas negras. «As belas fotografias», digo-lhe, desolada, enquanto procuro salvar ainda as menos atingidas. «Manchadas, estragadas. Porquê tudo isto? Eram tão leves as tuas nuvens, foram tão demoradas de fotografar na exacta medida de luz e de sombra». Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. «Agora estão certas», diz. «Continuam tão belas quanto eram, mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo».
- Rosa Maria Martelo
in A Porta de Duchamp, Averno
domingo, abril 11, 2010
Lama
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poesia de fora
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