a tentar desviar o curso do rio
que vem há quase três horas a fazer-te
companhia. Estradas pequenas
e poeirentas serpenteando sem rumo,
o sussurro dos mosquitos esgueirando-se
sobre a flor de um pensamento.
Um fio de vento entrança as malvas,
deixas a palma aberta da mão
cair entre pedaços frágeis de cor,
sufocando-os devagarinho.
Árvores tombadas, esqueletos de
imóveis em tijolo enegrecido, alvenarias
velhas de janelas condenadas e as sombras
bebendo encostadas um resto de luz,
quando chegas raspando a voz
nestes arruinados perfis do tempo,
atrás dessa beleza que erra sem ter
onde ficar.
Ultrapassa-te um casal que vem
no barulho de uma lambreta, e dás
com eles outra vez, pouco depois.
Um idílio no café. O cabelo preso
dela, a pele constelada de sardas
e sinais junto com o odor do creme
de duche, leite de amêndoa, lábios
tensos, esse calor de fruto mordido,
e o olhar cantando certinho entre
os beijos. Com mais e menos língua
o rapaz tem-la como quer. Chega-se
a um segredo, curiosa, ele arrepanha
o lóbulo por um bocado e deixa-lhe
um brinco de cuspo a balouçar.
Duas noites hão-de servir-te e a este
exercício de cinzas: o rouco sangue
da música, a espera, os mais repetidos
acasos, todo esse miserável folclore
que te anima a escrita – sinfonia
à deriva, imparável. No fim, riscar
muito, safar uns versos, fazer
os possíveis e não contar muito
com a interferência lírica.
Olhas para o lado, vês outro imbecil
com uns tiques elaborados, a mão
esquerda levantada num tom
agudo, à artista, lápis na outra,
um desenhito de traço esforçado e tosco
do que quer que entre e saia, registo
inútil como a flor que lhe pende já
morta do bolso da camisa. Os botões
apertados todos até cima, impecável.
Se ao menos alguém reparasse.
Pede as horas, umas moedas se der,
daqui a nada segue às canhas entre as
linhas mais recuadas da noite,
nuns avanços sobre as últimas mulheres
nos bares. Irá terminar, em desespero,
com lances às outras. (Amor, se for só
uma punheta, quanto me levas?)
A solidão é o pior. São de preferir
os corpos, todos, sucessivamente,
noite após noite, e voltar a casa
entre o lixo que adocica as ruas,
cuspindo a própria sombra e o sonho,
essa derrota tão popular, que um dia
te teve, te abraçou e te fez juras eternas.
Entras no carro e ligas o rádio que
te grita uma dessas canções americanas.
Quieto, aguentas o teu reflexo e,
sem nenhuma explicação, sorris,
sorris como um doido e o macaquinho
pendurado no retrovisor dança
quando aceleras.
1 comentário:
Parentes meus pendurados no retrovisor? xD*
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