sábado, janeiro 23, 2010

Tinta esperando

Quem como eu tem sempre qualquer coisa
para ir contando ...

João Miguel Fernandes Jorge

Por qualquer coisa, alguma simples
soma. Dos livros
o enfraquecido fio de palavras ainda
apalpando uma distância, tentando atar
qualquer ausência. Bon Iver,
nove canções das de ficar
à janela, dobrado para uma dor
de barriga, a puxar vómito
às memórias. Parece cedo mas
o sol adoça já o horizonte e faz
que trema essa linha de onde
o olhar recomeça alguma contagem
deixada a meio, um poema que deixei
em inícios de janeiro.

Chego cá fora então, a ver
se me apanho na surpresa de algumas
impressões, se oiço aquele murmúrio
no aguacento leito das horas, doçura
dolorosa que sobe em mim
como uma náusea. Pouso o cigarro
sobre um muro e ponho-me
a urinar um carreiro de formigas,
desalinhando-o. Dou-me muito a isto,
de novo este gozo
com os pequenos estragos à ordem
das coisas. Sou realmente um parvo
e deus, acredito, tem-me até
um certo nojo. Deixá-lo.

Há uns gemidos do vento foçando
por trás da casa, o jardim triste que
se estende por diante e segue a espaços
numa luz usada, um lençol húmido
de folhas, flores inchadas, enxertos
de cor e nódoas um pouco nervosas,
sangrando curtas pausas líquidas.
Entre duas árvores apodrece
uma rede e na relva segue um trilho
de caroços cuspidos, isto e o cinzeiro,
sobre a mesa de pedra, devolve-me
esse hábito, a manhã caída
de entre as mãos do meu avô.

Uma vagarosa brisa leva um gosto...
sei quando estou em Loulé
entre os de sempre, só meio acordados
no tardio derrame das ruas. Corpos
encostados, juntos, nos dois cafés
depois da biblioteca – homenagem
a Sophia, a essas ondas tombando
ininterruptamente,
à queimadura de sal que nos fere
os lábios...

Numa das mesas, à sombra sem intenção
de uma figueira cansada, apeteceu-me
um gesto mínimo, Ana,
um resto de calor e companhia,
esse ar, como te disse já, de flor
carnívora, cabelo curtinho e escuro,
com um sorriso de quem sabe e de leve
me faz que sim com a cabeça. A quê

não sei, mas parece-me certo,
e a tinta que esperava acabou por secar.

1 comentário:

Nuno Brito disse...

Lindo! Muito Bom


Adoro sobretudo estes versos:

ponho-me
a urinar um carreiro de formigas,
desalinhando-o. Dou-me muito a isto,
de novo este gozo
com os pequenos estragos à ordem
das coisas. Sou realmente um parvo
e deus, acredito, tem-me até
um certo nojo. Deixá-lo.


Texto Muito Completo, sincero e Vivo
A citação também é muito boa - Tenho seguido com atenção os textos de João Miguel Fernandes Jorge - E quero Ler "O Barco Vazio"


Parabéns
Abraço:)