Lembro-me de viajar no selim da moto, agarrado ao padre. O padre gostava daquela moto que só lhe dava desgostos e gozava com ele, como e quando queria, empanando num sítio descampado, deixando de pegar em horas de aflição. Era um amor tempestuoso aquele, entre o padre e a moto. Se ela o arreliava, obrigando-o a puxar centenas de vezes pelo motor de arranque, o padre que era um bom homem sanguíneo, começava a praguejar, olhando para um lado e, para outro, com medo de ser ouvido. Lembro-me de viajar agarrado ao padre no selim da moto, atravessando pinhais, lugares brutos e feios, de geadas que mordem e nevoeiros e ventos que parecem ser o único sustento do mundo. O padre cantarolava, compondo de ouvido música sacra que a Sassetti em Lisboa recusava porque não rendia. Eu balbuciava versinhos breves sobre a Senhora de Fátima ou punha-me a pensar em coisas que o vento fazia arrastar consigo: se o mundo alguma vez me aceitaria sem metamorfose ou enredo fútil. A noite então fechava-se e as línguas íntimas da terra pareciam também recitar coisas incoerentes aos ouvidos duma criança, que viajava agarrada ao dorso negro dum padre. Portugal era, nessa altura, um salazar de lés a lés e Deus um padrasto a quem se devia prestar pontualmente contas. E eu um acessório de padre: como o turíbulo e a estola, o breviário ou a virgindade apetecida.
- Armando Silva Carvalho
in O que foi passado a limpo, Assírio & Alvim
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