sexta-feira, janeiro 29, 2010

De sol a sol

1

O sol nasceu agora
E a matéria
Da noite
Foi deixada aos deuses do sono
E aos seus auxiliares
No pesadelo.

Lavo o rosto do sol,
Beijo-lhe as crinas, os seus olhos
De animal incendiado.
Levanto-me com o destino marcado
Pelo seu relógio ardente
E atravesso o caos da manhã
Como um atleta
Que vai inaugurar a limpidez do mundo
Com um verso ainda nebuloso
E trôpego.

2

Meio-dia, severo e uno, sol duro.
As mães cruzam com os filhos
À hora de repartir
A justiça.
Os corpos sabem da separação
E não conseguem falar.
As mãos fazes e desfazem
Os jogos.
O cérebro reflecte o sol,
O rigor da ciência,
A lúcida tristeza, a exacta natureza
Da lei.

Caminhamos ao lado do mundo
E não aceitamos
Este sol
Impiedoso da verdade.
E vamos a meio do rio, destacados,
E nítidos.
A erva já não canta, e de manhã cantava
A inocência.
A luz cega agora os passos
Que parecem dançar à beira dum passado
Pessoano,
Fluentes, independentes,
Pós-modernos.
Aqui à beira do sol fixo
Como uma planta asfixiada pela luz
Que lhe dá vida.

3

Só temos a certeza de que tudo declina.
Os verbos, o amor, o saber,
O sol.
É quando a beleza mais se exibe,
Quando a carne é madura
E a sombra cresce
Como outro ser ao lado do ser
Quando a memória
Acompanha o curso desse rei que vai nu
E ninguém denuncia.
Quando a paixão tem o canto do cisne
Ou o fulgor que não queima
A voz de quem cantou.

É então que uma curva se desenha
No céu e a moeda da vida
Paga
O percurso do fogo,
Que é como dizer tempo
O poente descrito em vários céus
De cinza.

- Armando Silva Carvalho
in O que foi passado a limpo, Assírio & Alvim

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