terça-feira, novembro 24, 2009

Precisamos voltar a caminhar*

Os caminhos andam cantarolando as inseguranças.
E são estreitos por natureza; as mãos humanas é que cravam abismos.




Mergulho.



Eu no profundo.

Ressaca do mar.

Ressaca. Beber do mar. Embriagar-se.

Com goles me embebedei depois que provei da saliva da vida – seus álcoois vivos.

Cores mornas babam em pães frescos na manhã de domingo quente.

O guarda-sol já deve estar fazendo companhia à cadeira de praia.
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Eu vou sombrar onde o sol não pode ser

E quando molhar

Eu vou sobrar onde o guarda-chuva não consegue proteger.
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Existe uma linha tênue que separa o sóbrio do ébrio
Para quem engole gotas de vida.
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(deixei o conta-gotas no banco de trás do carro)


No começo, era só você e as microfonias de verão. Depois tudo passou a estandarte, blues infectado de cores mornas. Tendenciosas as tuas vaidades multifacetadas, aquela linguagem rebuscada que só traduz as nossas distâncias. De griffe, tu abusas de alguns defeitos meus, e consome-me assim, inteiramente efêmera. Um ato de resistência tornar o instantâneo ideal, pois bem que se torna único consumir aquele produto que não pode ser colocado em série. Seriamente são os teus sorrisos, contaminados com Londres morna. Morosidade e neblina, o blues que me distrai enquanto condena. Depois, era só você e a distração dos dias, e veio o inverno distraído, que me entorpeceu ao queimar. No fim, era só você e as microfonias.

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Motivos relevantes para intrigas superficiais.

Faz tempo que eu não ando comestível. Tu sabes que tenho me engasgado com pouco e viciado-me em muitas coisas que antes me eram vulgares. Vejas tu o quanto tenho me afastado das narrativas plásticas bem articuladas. Agora só engulo artes marginais, daquelas que meu pai discrimina com toda a sua austeridade de mundo. Vejas tu que ando a rever Vertov e Tarkovsky para quebrar a própria linearidade dos meus dias. Não agüento mais essas narrativas cheias de personagens doces e de lirismos saltitantes. Intriga-me tudo o que é do feísmo, expelido da normatização dos gestos, expulso da naturalização das idéias. Intriga-me tudo o que está sujeito ao sujo, inacabado, rude. Gosto da profundidade superficial, da forma profunda com que olhamos para as coisas superficiais da vida. A própria arte e toda a sua improficuidade - sabia bem Oscar Wilde o que quis dizer com "toda arte é absolutamente inútil". Então, dedico-me horas e horas de fugas pelas beiradas da inutilidade, tão fundamental para minha atmosfera constipada. Eu relevo qualquer motivo suspenso nos jardins da Babilônia em troca de muitos devaneios e delírios. Qualquer alteridade me agrada, quando o outro me intriga e, digamos, não é tão comestível assim.
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Eu sinto muita falta de um passado do qual eu não fiz parte, mas que habita em mim já faz algum tempo. Falta qualquer coisa mais, um “boa noite” desinteressado, a crença na procrastinação da luz no fim do túnel, a cegueira que não nos é forçosa. Vim para Portugal por revivalismo e garantia de campos minados. Recontra-me uma profunda tristeza de ver que o lagostim que vejo a cada esquina ainda me incomoda nestas bandas de cá.

A chuva provoca um forte derretimento de cores em minha retina. Eu replico para não entorpecer, mas é inevitável necessitar de afago e desprendimento. Pedaços amáveis não caem da intelectualidade, egoísta. Alguma coisa falta, talvez o tempo que não goteja em mim. Ausentam-se abrigo e desvelo. Portugal é de ruas muito cruas, e são duras e nuas as faces derretidas deste lugar. Um lagostim comeu minhas promessas e foi se enterrar em algum bolo de neve por aí.
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October. Cansada da busca pelo quadrado perfeito, ou mesmo só pela perfeição dos quadrados. Cansada de enxergar nos ângulos retos a reta, a direção, qualquer nostalgia que me faça acreditar nos dias entorpecidos pela ausência. Os teus quadrados nada mais são do que a segurança, a estreita certeza de que as coisas não podem sair de tuas mãos, de tua conduta, do jeito latente com que articulaste o mundo dentro de ti. Ah, já não quero mais racionalizar o que sinto, nem justificar por que acabou em palavras. Tudo o que me dás é demais, excessivo, desleal… Não há paz que me tire desse torpor, laboratório dos teus dias. Eu quero. Não há paz.

Por que estás sempre. Indo. Sendo.

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As cores foram mostradas ao tempo e manchadas no ecrã das expectativas. Visor de mãos vazias, falta qualquer coisa nesse teu ritmo claustrofóbico. Eu não acredito que estou vendo a luz sair do túnel e tomar as tuas retinas knoks. Eu estou vendo que a luz vai invadir a ausência de portas para que eu possa entrar e confrontar-me com as tuas certezas. Há qualquer coisa de ingênuo na forma como eu me entrego aos teus espaços perfumados. Eu estive em Dublin e não consegui congelar a imagem do meu frio existencial comendo os impactos e tua indelicadeza. Eu sei que a cabeça tem doído e despido minha loucura de fugir dos olhos apurados. Os olhos têm doído e abrigado muita luz. Eu já não comporto os ecrãs, os melindres e as frustrações. Quero derreter como as cores espargidas na neve. Eu vi, vi o teu azul de veludo.
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Ele doía como qualquer coisa feita de vestígios, vigílias, sortilégios. Juro que eu queria ter entrado nele antes daquele gole em que ele tomou tudo de mim – tomou meu lar, minhas raízes pontiagudas, meu mecanismo doce de provar as amarguras da vida. Ah, eu queria que ele lentamente me falasse da urgência da permanência (saberia Eugenio de Andrade bem sentir aquilo que um dia escrevera?). Ah, eu queria que ele me contasse sorrateiramente dos instintos atrofiados em nossas camas vazias. Vivo já em outras terras, aquém-céu, além-mar. Vivo a disparar disparates para esquecer dos profundos silêncios que já sei pontuar em minha vida. Todos os dias acordo a pontilhar minha solidão engarrafada em um copo de leite com achocolatado, algumas torradas e muitas aspirações a me oferecerem “bom dia” como se eu precisasse comprar a alegria do mundo em promoção. Todos os dias eu, cheia de lágrimas portuguesas, teimo em dissecar nos grandes acasos meu lirismo áspero. Já não me vou destas terras, já não me vou arredia, e sinto o tempo fazer companhia à trilha sonora da minha vida mesclada a vento controlado. Eu queria tabaco, muito tabaco e um pouco de delicadeza. Eu queria que ele não andasse sempre à frente de mim e que, de uma forma ou de outra, um dia ganhasse um nome para além da terceira do singular. Qualquer coisa de singular eu preciso encontrar em mim para poder manter as sobrancelhas pontilhadas, os recontros nos sorrisos leves, as bolachas de água e sal molhadas a prestígio. Eu queria, apenas, aquele indício de que, para além do meu ser incrustado, taciturno, haverá alguma chance de me salvar. De me salvar de ti.


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Culture Post. Beijo postado, selado. Stamp. Estava estampado, eu sei, naquele jeito inocente com que me olhaste da última vez. Eu sei que na minha idade já lá se vai qualquer tentativa de. De potlatch urbano que nós somos, eu esperava pelo menos uma renúncia tua à solidão. Esperava qualquer timbre entre a intuição e a intenção. Culture dos selos. Selar pelas veias da língua a inocência (quase) alcançada pelos caligramas, com as suas malícias disfarçadas de infância. As imagens que me lembram, numa tentativa de aprisionar aquilo que se mostra e que se perde nos vestígios. Quase fragmentos, vejo-te por dentro, tronco comum de todos os meus férteis ímpetos. Sempre me fascinou a tua inclassificabilidade: nem correspondias às expectativas do contexto do meu cotidiano, nem te integravas docilmente ao que poderia caracterizar os que estão à margem. Como é estranho olhar, com os dedos limpos, a nossa cama. Frequentemente, o erro de se ligar ao outro por meio de uma redução identitária de ambos. Autenticidade aparente de um invocada como garantia da do outro, um modo que ameaça um site-specific a dois. Ameaça que expulsamos para longe. Faz-me falta, tu. O princípio da indeterminação por meio da memória, a arte de viver entre a confusão e o acaso. Caso eu te procure, diz-me coisas de menor intensidade. Eu queria ser menos intensa e socorrer o que me encerra. Cópias digitais dos dedos dissolvidos. Cultura postada, forçada. Copi + um copo de uísque, por favor.

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De qualquer forma, permanece o peso das amarras como placebo, contração das pessoas excessivas em minha vida. Fragmentos de flashes, imagine a imagem em clarão. Flash aesthesis desmoronando no teu poder de observação e síntese. Desmoronando pela boca, o teu paladar que sustenta as paredes que me observam. Viste meu cabelo artificial e vestiste minhas roupas coloridas preteridas pelo cinza, que fascinza. Encantamentos coloridos condenados pelas camadas de cinza que vão guiando meus filmes à la 60'. Pelo teu paladar, o gosto que já não me acinzenta, as cinzas do cigarro que apagaste. E sumiste feito fumaça.


Tem qualquer coisa de agressivo em ti, agressivo no conteúdo de delicada forma. Talvez uma vontade imensa de estourar e sumir, nas cores que Pollock não conseguiu abstrair nem guardar para a eternidade. Action painting, os cenários por onde tu costumas gotejar. Tem qualquer coisa de agressivo na minha forma de lidar com o derretimento das cores. Não sei se cabe em mim os prejuízos, não sei se cabe nos teus sapatos vermelhos as amostras. Tinha qualquer coisa de truculência naqueles versos sutis de Rimbaud, naquelas frases escorregadias de Kerouac, naquelas fagulhas de imprecisão do teu toque. Tinha mais do que o romantismo puritano que adquirimos em nossas infâncias castradas (e castradoras). Tem qualquer coisa de agressivo, eu sei, na forma como eu ando pelo mundo, disfarçando-me em cuidados. Dripping que respinga os cenários de tua ausência. A minha luz colore a tua máscara, eu quero encher os espaços com os dias. O tempo que goteja em mim.
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Sábado de manhã sonolento. Que cidade é esta? Eu resisto a qualquer tentativa de ir embora desse meu porto seguro. Não estou nesse Porto, mas já quero voltar para o meu endereço automático. Preciso explodir. E faz-me falta tudo, mas já não troco minha liberdade pelos trocados da segurança. E o comboio que não chega. Azure Ray nos fones do meu entorpecimento. Diz-me coisas e encerre-me. Percebeste que eu cortei o cabelo na altura dos olhos? Percebeste que na minha esquizofrenia não há lugar para as luzes de Natal? Viste que, de alguma forma, já é tarde para guardar as doses de conveniência? Não há mais espaço para a permanência, digressão acentuada neste comboio. Não há mais espaço para procurar a mim no outro. Não há mais espaço. Caindo. Não. Há.

Sábado cai a tarde. Torpor nos espasmos deste lugar, anunciando o aliviar do peso. Crepúsculo de neve e guache. Eu queria apagar o tempo e dançar. Dançar no estado das coisas no presente. Cronus devorando seus filhos, Morfeu aliviando a existência. Quero dançar na neve deste lugar. E sumir volátil, pelo efêmero dos nossos dias.
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Qualquer dia desses, eu me deixo cair lentamente nas tuas mãos. Qualquer dia desses, eu deixo de procurar explicação para todas as grandes sinfonias do meu bliss instantâneo. Eu não consigo dormir, não consigo seguir nessa falta de reparos, não consigo grandes ensaios e representações daquilo que eu sou num piscar. Eu não consigo dormir nos teus olhos atentos, fratulências de uma falta que dói. Dói ver-te criar castelos de areia isolados para não se deixar dissolver pelas águas do mar. Mas a areia e a água se dão tão bem... E bem que eu sei que o meu lugar já não é mais nos espasmos ou nos sumos digeridos. Sou por demais líquida e injetável para ser digerida tão paulatinamente, para ser tão aos poucos uma parte do que sobrou das minhas crenças. Foi pouco, muito pouco o que restou no prazo de validade de minhas sensações, já não me sinto tão bem aqui neste lugar. Falta qualquer gesto de desvelo, para além de uma cobrança ou uma simples troca. Falta o toque em que é mais importante sentir que as mãos estão em movimento do que prescindir da pele do outro e do que o outro pode oferecer. Azure Ray e a falta que eu sinto do mar, em beijos azuis no fim da noite. Eu morava olhando para o mar e não sabia dos seus sargaços – vim encontrá-los no terraço de minha existência. Qualquer dia desses, eu me deixo cair lentamente nas águas, como Lionel sumindo das mãos de Diana Arbus. Qualquer dia desses, eu me deixo.
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Tudo parecia associar-se a uma atividade: umas férias do ou para o espírito. O tom sarcástico, alegorias de cabaré popular com aquela ternurenta mordacidade, gargalhadas cheinhas de plumas pink. Um estrado para a coisa ser menos desoladora, um estado para a alma desolada alcançar sua defesa perspicaz. Decreto da malícia, da nostalgia, do humor vermute. Verniz nas unhas vermelhas, bálsamo nos sorrisos pintados. Decreto o excesso de absinto. E sinta a ausência de exhilarating, palco sóbrio e bem pensado, masturbações racionais cobrindo a ausência de delírios. Volúpias articuladas e formais. Os ternos alucinados brincam às festas, com a dedicação cruel dos palhaços. Depois vem o prazer dos desvios. Sempre procrastinado. Deixamo-nos atingir pelas coisas. E ela ali. Mantém-se no ar com aprumo e elegância, imponente de informação e energia. Mas logo se vê – e se exala – desaparecida, estacionada. É esse paradoxo que a mantém no palco: apercebe-se porque estagna. E ela ali. Ação que tenta o repulso, no seu movimento perpétuo e absurdo a la Tinguely. Delícias, delícias, delícias. Plásticas. Depois vem a invenção. Deixar viver as ruínas do seu sistema de sobrevivência, deixar aparecer a ilusão de um mundo que nos escapa. Arte frágil, tom cáustico, mundo caótico. Hóstia que faz as coisas serem plasticamente concretas. A religião do prazer. Encontrar o prazer depois de abandonar o sonho. E ela ali. Faz de conta que tudo se vai prolongar por mais uma noite, as atrações nervosas, as trações imperdoáveis. Ah, e eu acho graça de te ver se justificando. Tudo isso é medo de que eu apreenda algum segredo inconfessável de tua alma? Isso me agrada. Isso me deixa leve e grave. Eis a primeira etapa, a agudização prática. Isso está ficando saboroso. Eu vou te comer com a mordaz gula irlandesa, como eu fiz com Bernard Shaw e Oscar Wilde. Dose de hesitação e medo. Eu estou saboreando o teu escárnio, namorando-o até que me venha o momento da resposta. A resposta que me isolará de ti. Isolar um comportamento de fracasso, isolador comportamento de agressividade. Um objeto familiar alfinetado como um inseto raro. O inseto que nos tornou preciosos e significativos por fazer de nós objetos em potência de ser esmagados. Um inseto, apenas um inseto, preservado como fóssil, uma ruína arqueológica, testemunha insubstituível de nossa solidão. Solidificada a memória, pouco me importa a ausência de tuas cartas. Tudo o que eu mais queria era o teu desengano. Tudo o que eu menos queria era a tua retratação. E ela ali. Um guarda-chuva ao sol agitado pelo vento. Que é o smoke senão a coreografia da transformação? Há nela um ébano muito particular que não convida à reflexão e é claramente resoluto – aquilo que hoje defino como o negro de Lúcia. Lúcia deixava nas pessoas uma impressão profunda. Nada de brincadeiras com metáforas, uma visão clara descomprometida. Quixotesca e balética, além de extremamente curiosa. Intenção e intuição, Lúcia era profundamente inteligente, embora descontraída. Lúcia, que até no nome possui luz, já não tem medo do escuro. O cabaré popular era colorido e ela quer os obstáculos não-metafísicos. O efeito dos milagres ácidos. E ali. Ela.



*Manaíra Athayde

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