domingo, novembro 15, 2009

O diário do Dr. Johan Kremer

O diário é um dos géneros da literatura autobiográfica mais profusamente cultivados. Num diário, diz-nos Clara Rocha nas suas máscaras de Narciso, a relação entre o eu e a escrita "define-se pela contradição entre a vontade de falar e a de guardar segredo". A vontade de falar do Dr. Johan Kremer falou mais alto do que a sua vontade de guardar segredo e o seu diário pôde chegar às mãos do historiador e, mais tarde, muito residualmente, às nossas. Fico a saber que o Dr. Johan Kremer escreveu um diário na página 466:
"(...)
Leva após leva, os comboios que seguiam para Auschwitz somavam novas vítimas; no dia 28 de Agosto, os milhares de deportados de Paris incluíam 150 crianças com menos de 15 anos. No dia em que o comboio correspondente chegou a Auschwitz, um novo médico alemão, o Dr. Johan Kremer, que chegara ao campo na noite anterior e seria instalado na Casa dos Oficiais SS junto da estação, registava no seu diário: "Clima tropical, com 28 graus centígrados à sombra, poeira e um sem-fim de moscas! Excelente a comida na messe. Esta noite, por exemplo, tivemos fígado de ganso de conserva por 0,40 marcos, com tomates estufados, salada, etc." A água, acrescentava Kremer, estava contaminada, "por isso bebemos água mineral, distribuída gratuitamente".
Dois dias mais tarde, o Dr. Kremer escrevia: "Presente pela primeira vez numa acção especial às três da manhã. Por comparação, o inferno de Dante quase parece uma comédia. É justificadamente que se chama a Auschwitz um campo de extermínio!" Os judeus a cujo gaseamento Kremer assistiu eram os que acima referimos como tendo vindo de França, e o grupo incluía setenta rapazes e setenta e oito raparigas com menos de 15 anos. Muitas destas crianças tinham sido deportadas sem os pais, contando-se entre elas Helène Goldenberg, com nove anos de idade, e a irmã Lotty, com cinco."(1)
Nem Helène nem Lotty puderam chegar aos 11 anos, idade em que Anne Frank começou a escrever o seu famoso diário. Em compensação, o Dr. Johan Kremer era um conhecedor da poesia de Dante.
(1) Martin Gilbert, A segunda guerra mundial, D. Quixote, Lisboa, 2ª edição, 2009, tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, p. 466.

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