quinta-feira, outubro 01, 2009

SITUAÇÃO E ASPECTO DA PRAÇA DJEMAÂ EL-FNA & OUTRAS VARIAÇÕES

limpam a
gordura da noite
no rectângulo da manhã

a praça os terraços
enigmáticos comerciantes
de constelações no olhar vestidos de
luxuosa sujidade

onde foi o banquete passam agora
vassouras água atirada de baldes negros
o sonoro céu de Allah

subo ao terraço

penso num enigmático
tratado de adivinhação ainda por escrever
algo para lá dos textos
orações e cânticos do saltério
médio-oriental

recuperar o sentido oculto
dos velhos mapas astrológicos e astronómicos
a persecutória influência dos planetas

eu tinha assistido
ao chamamento dos muezins
desde os minaretes das mesquitas

a voz bonita de uns
a rouca e menos melodiosa
de outros

Allahu Akbar
Allahu Akbar

reparam acaso os fiéis na história dos exércitos

do Faraó e do povo de Samud?
na aperfeiçoada manhã deste século de decesso
no acto manuscrito dos poetas
calígrafos arquitectos ourives

cultos sibaristas das oficinas de Serrallo?

julguei então ter entrado no sono da palavra
a manhã subiu nas horas de um pequeno livro de rezas
que estava na mão distraída de um rei
de outra latitude cármica

ainda assim havia laranjas no sumo da praça

rezo falsamente num terraço sem flores
a multidão consente viver outro dia com as mãos
num comércio importuno
a areia do deserto alastra dentro
e fora de mim

Glorioso Alcorão Contemporary
flemish book painter ─ guache sobre
a memória poderoso e laudabilíssimo
deus

lapidar cirurgia das paixões seculares
a minha mão segura o vidro escaldado do chá

(açucarado céu do
dia prometido)

verte o líquido fervido para um
outro copo alguém acende um cigarro estranho na
mesa junto às escadas um grito uma ave no
no meu olhar em estuário

depois elevo a presença do caderno ao
plano da mesa ─ sim, o cigarro tem um
orgulhoso perfume que passeia em
toda a extensão olfáctica
do lugar

abro na página
de uma outra noite de uma outra
cidade

apontamentos sobre vexilologia
um poema para Murad III, outro poema para os
103 filhos de Ustad' Osman

dos quais sobreviveram apenas 74

- Miguel-Manso

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