segunda-feira, setembro 28, 2009

A memória tripartida

I.
Comprei as memória de Borges e de Shakespeare a um estranho homem que se escondia no Borgo della Morte em Veneza. O seu rosto era diagonal e em tudo se parecia com o sumo de cerejas maduras a pingar no espaço sem gravidade. Trazia na mão uma foice de vidro e fumava de uma agulha comprida algo que me parecia ser todo o cristianismo. Não interessa a escolha do caminho mas a intensidade com que se o percorre.

II.
Ditou-me em dialecto sumério o terceiro segredo de Fátima e contou-me os sonhos dos meninos que dormiam em Pompeia antes da irrupção. Os sonhos sabiam a cereja, o negro transmitiu-mos não por palavras mas num dialecto gustativo. Através de linguagem sensorial ofereceu-me também a memória de Ricardo Piglia e a de um falso moedeiro que se encontra no inferno. Perguntei-lhe se era a minha alma que queria, o homem acendeu os crucifixos que trazia ao peito. Eram de tabaco negro os três Cristos invertidos.
Partiu-se o seu rosto em pequeninos cristais e reconheci neles todas as caras que tinha visto durante a vida. O múltiplo homem que encontrei era todos a olhar para mim. No seu olhar também me reconheci a mim. Sabia também a cerejas a memória de Papini. Por serem uma só as de Abellardo e Heloísa tive-as de imediato.

III.
A ele pedi que me deixasse entrar no seu dicionário ilustrado do psiquismo humano que era uma torre latina de vários andares. O que lhe pedi foi a máxima experiência humana. Se bem que a primeira incorporasse a segunda, evoluí no erro com as três.

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