terça-feira, agosto 18, 2009

Zulmira, ao entardecer

Encontrei-a talvez pela última vez
na rua limpa de um «sábado morno».
Fingi não a ver, vergonha
de um rosto outrora deposto
à sombra de um mínimo reino
– de nós dois, de outros mais.
Foi seu o apelo, um largo sorriso cariado
no intervalo de varrer o passeio
«só até às três horas», para de novo
abrir a taberna onde ninguém lhe suplicará
a alegria falsa de copos de vinho capazes.

Minha mãe podre, ignorante para sempre
de o ser, acumulou naquele sorriso
já velho as duas únicas profissões
de atestada nobreza: o cuidado raso das ruas
(tardia esmola municipal) e o ofício
de calar a sede. Ela só me há-de um dia velar
num íngreme adeus sem regresso.

Encontrei-a ali, talvez pela última vez,
no coração deserto da cidade
que reneguei. Minha pobre mãe que o foi
e não tive, a sorrir p'ra mim
o mesmo sorriso mais velho que iluminou
incertas inúteis tardes. Que só ela saiba
o luto de eu ter nascido para vinhos
fortes, afectos cansados, desígnios nenhuns.

- Manuel de Freitas

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