sexta-feira, junho 12, 2009

Passagem cuidadosa

No ténue perpassar de nuvens cuidadosas
como flores que abriram no silêncio de outras,
a mim próprio escuto, e os olhos com que vejo
são minha voz falando o tempo de passarem
mais outras nuvens, qual a vida ao sopro,
ao invisível sopro ou chama ou só altura
interiormente aberta ao espaço que a rodeia.

A mim próprio escuto, eu sei. Mas não de mim,
que alheio vivo a vida que em mim fala.
Como as nuvens que passam cada vez são outras,
a quanto escuto ignoro ou esqueço ou nem contemplo,
abertos olhos, meu destino além
de mim, de tudo, eu próprio sou porque
já fui e não serei, ou serei sempre mais
de meu destino a essência que lhe dou
na extrema contingência de tornar a ser.

As nuvens passam cuidadosamente.
Escuto-as ou me escuto? Vejo-as ou me vejo?
Um cicio brando, um murmurar, um fluido
e ténue perpassar de pétalas molhadas,
como flores que abriram no silêncio de outras.

- Jorge de Sena

1 comentário:

Nuno Dempster disse...

Sena, o mal-amado por alguns, se não por muitos, talvez também porque reclamou para a poesia portuguesa a inteligibilidade da linguagem poética. Não poucos lhe devem isso e muitos o calam, cuidadosamente. Mas ele já o tinha previsto em vida no poema Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos