segunda-feira, junho 29, 2009

«Não há mundo aqui»

não devemos ser eloquentes,
não somos profetas, nem somos precursores,
não nos agrada o paraíso, não tememos o inferno

Ossip Mandelstam


para o José Quintas
I.

Sobre a mesa a trégua de um encontro
com livros abertos, meias palavras
e a tarde num lento arremesso
entre as superfícies
do também lento comércio
onde um vento ronceiro se esfregava,
suspirando, tossindo ou engasgando-se,
e que ao chegar junto a nós
parecia flanquear-nos – um ou
outro golpe de rins… Como estavas lá
não preciso de carregar na sensação.

Seguimos adiante na falta de assunto,
quando já ninguém em nós deseja um
somos de um país que é só um rumor,
uma cantiga de bêbedos a favor
de tudo o que se tiver de pé.

Antes assim, levar a dor ao enjoo
atravessando algum roteiro exausto,
a cidade, um vozear que nos pega e leva
até que o calor nos deixe meio
inconscientes. Sentados,
virados para um desses ridículos
jardins, onde nos afeiçoamos
à hesitação que por ali vai florindo,
onde às vezes também sinto que sou demais
para o corpo que me envelhece e entorna
esta sombra artificial sobre tudo, e tudo
é tão dolorosamente falso. Mas é claro,
na minha idade se escolhi a tristeza
não é estranho que ela abuse e lhe falte
vergonha como a qualquer outra
desmesurada paixão.

Outras vezes quase não sinto nada
e de um gesto nascem-me as mãos, afastando-se
para se agarrarem às coisas. Desfazem-nas,
e no fim são as mesmas duas metades
de um fruto vazio.


II.

Perdemos ainda o tempo que conseguimos
admirando alguns poetas: o sangue que ficou
de uns, a ordinária honestidade dos de hoje,
bem menos as infantilidades verbais
dos outros. Eu, como te disse, prefiro
os que vão falando, que passam por mim
e me chamam mesmo que para nada, e que
gostem só, como eu, de cansar palavras.
Não tenho pressa, não lhes meço a eficácia,
e chutos desses, de pouco mais que um verso,
se algum me acertou foi aquela primeira
linha de coca.

Agora que já nada de interessante
nos interrompe e o coração é sempre
a mesma história, ficamos dependentes
do que se aproveita de nós,
como de um modo ou de outro o silêncio
de alguma coisa nos lembra que a morte
tem os seus motivos e até a melhor
das intenções.

Serviu-nos a brevidade dessa rua,
a curva em que as estrangeiras se esqueciam
do que as levava e nós adoçávamos nelas
o olhar, rindo de como é fácil perder,
e de gostarmos tanto disso
como gostam de muros
os gatos, e se aguentam vigiando
pequenas certezas em volta
de nada. Tudo o que leva a isto,
os versos possíveis,
dedicados a quem tenha ainda
como gostar deles.

Encostado a uns prédios antigos
o sol bebia o seu veneno, soltando
um resto de claridade suja que pousou
por instantes sobre os nossos ombros,
dispersando-se depois. Faltou-nos
a convicção habitual, dissemos adeus
e assim ficámos. Eu apanhei um verso,
outro a seguir, sozinho abri um espaço
e esperei uma boa ideia, um entusiasmo
que só não me teve nem me levou
porque não quis.

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