Na Casa da Mata todos eram felizes. Construída a partir de tábuas de madeira roubadas à vizinha – momentaneamente distraída durante a confecção da broa de milho –, pregos comprados na única loja da aldeia, camuflada com fetos arrancados à terra. Na Casa da Mata não havia telhado. Não se poderiam ver as estrelas do céu quente de Agosto, se as houvesse. A Casa da Mata apenas vivia durante o Verão. A sua existência iniciava-se no principio de Junho até atingir o seu auge no último mês das férias, para, pouco depois em Setembro, se extinguir na memória apressada dos seus moradores.
Triangular e relativamente alta, a Casa era sustentada pelo tronco de três árvores, suficientemente antigas para mostrarem orgulhosamente as marcas de outros verões. Afastando a hera que as cobria, podiam ver-se os nomes e datas que, ano após ano, se acumulavam à volta dos seus diâmetros. Remetendo ao próprio tempo um sim: sim, nós estivemos aqui. O pinheiro do lado esquerdo era a escada em caracol. Obrigava as crianças a subirem cada um dos seus ramos com uma força maior à que seria exigida, caso as escadas fossem degraus racionalmente ordenados.
Havia sempre alguém na Casa. Muito embora tal presença só pudesse ser observada através do cano de espingarda que casualmente espreitava pela janela. É por isso correcto dizer-se que, na Casa da Mata, a única música consentida era a do disparo. Ao seu redor, lá bem fundo, no chão, um cemitério de rolas estendia-se. Alimentando os cães e os gatos, residentes permanentes daquela quinta.
Eram três, as crianças que fugiam à sesta para ali se reunirem. Por vezes, um adulto – demasiado infantil para se render à idade biológica do seu corpo – acompanhava-as, munido de livros. Mark Twain era, invariavelmente, presença tão habitual como os cartuxos de pólvora. Apresentava-se em forma de vagabundo. E todas as crianças se tornavam em Huckleberry Finn. Nem um Tom Sawyer poderia entrar. Apenas o vagabundo, o pária, o esquecido, teria ali lugar. Quando se deseja viver na copa das árvores, ser marginal é requisito obrigatório.
Fora da Casa ficavam os sapatos. Ninguém entraria calçado naquele espaço. Havia um respeito estranho nisso. Não era apenas um lugar. Era um tempo. Um tempo entre os tempos. Dali só se saía quando o sino tocava lá em cima, na quinta, dando conta que o jantar já estava na mesa.
Até um dia. Até ao dia em que o sino deixou de tocar. E nunca mais tocaria. Era deixado à consideração dos meninos a que hora deveriam retornar a quinta. Obviamente que, quando esta possibilidade lhes foi dada, nenhum voltou. Viveram ali sozinhos durante quatro dias. Dormiam de tarde e, ao início da noite, despertavam. Contavam histórias uns aos outros. Todas elas inventadas. Não eram suas. Não retratavam as suas vidas, mas antes, as vidas que gostariam de ter e as pessoas que gostariam de ser.
Um seria caçador furtivo em África. Outra seria princesa. Porque sim: nascera para mandar e para ser princesa; mandar já mandava – a Casa da Mata, tinha sido edificada segundo um decreto seu: “Façam uma casa nas árvores. Vai ser uma casa só nossa!” – tornar-se Princesa seria uma mera questão de tempo. A outra – a mais pequena – escreveria sobre as aventuras dele em terras estranhas e as decisões tirânicas dela. Cabia-lhe um peso idêntico ao do tronco das árvores. Seria a memória.
E ela lembra-se. Ainda hoje se lembra da última manhã em que acordou na Casa da Mata. Sobressaltada pelo som de um tiro. Potente. Aguçado. Letal. Disparado longe da Casa, mas ainda sim demasiado perto. Demasiado presente. Viviam tão alto naquela casa, a que as folhas de feto davam uma cor tão viva que, ainda ensonada, temeu que os confundissem com pássaros.
Existiriam sempre outros caçadores. De uma espécie que não viveria em casas como aquela. Daqueles que sobrevivem presos ao chão. Pouco tempo depois do tiro ouviram as vozes dos adultos chamá-los. Era perigoso estar na Casa da Mata. Ninguém, a não ser os adultos da quinta, sabia da sua existência. Outros, vendo apenas a mata, poderiam disparar; atingi-los. Magoá-los. Matá-los.
O medo é sempre a melhor arma contra as ilusões das crianças. Nenhum deles voltou à Casa. No ano seguinte, um adulto mais preocupado mandaria destrui-la. Faria o melhor: protegê-los-ia.
Anos mais tarde, quando as crianças se tornaram adultos, continuariam a respeitar o temor. Presos à quinta, bebiam nas noites quentes de Agosto. Em conjunto. Já não havia vidas hipotéticas para serem vividas. Mas havia ainda o olhar preso nas árvores onde, um dia, existiu a Casa.
Sabendo que sim: existem casas com raízes que correm no sangue. E que, no íntimo, eles eram feitos da mesma madeira roubada que constituía as paredes de uma casa sem tecto. A vida não lhes mentira: não haveria nenhum caçador furtivo; não haveria nenhuma princesa; não haveria nenhum livro sobre eles. Haveria somente o que foram desde o primeiro instante, na Casa da Mata: vagabundos.
- Beatriz Hierro Lopes
segunda-feira, junho 29, 2009
Do outro lado da janela
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