«Que fazer de um morto? Sobretudo não o enterrem fruste escamoteação de um corpo que se não desvanece. O enterro é de todas as aflições que nos causa a tirânica disponibilidade do morto a que mais brutalmente improvisa uma grosseira ferramenta para o horror de não sabermos o que fazer do cadáver. Enterram-no em nome da higiene, pistola carregada de bolas de naftalina que riicochetam no mármore dos eleitos. A morte é a eleição da necessidade. O morto ri-se. O riso é o seu reino inesgotável. A estação violenta de decifrar os vivos. Porque o morto sabe que não há morte. Há o sacrifício de um que se enrola na onda que o devolve noutro às areias do naufrágio. Não há além. Há vai-vem. O trabalho do escaravelho que no sonho da múmia carrega às costas a eternidade.
Tenho mortos vivíssimos como estrelas ferozes rangendo a impalpável vingança da higiene que os sepultou. Sou uma esponja das chamas vingativas dos mortos inconsumíveis nas suas próprias cinzas. Fixas e ávidas as suas bocas engendram a minha poética: a mais resoluta ignorância que alguma vez envergonhou os sácios, funcionários do assombro de estarem vivos. Por mim assombro os outros com a lívida certeza da minha ignorância de saber-me sabida pelos mortos, esplendorosos fragmentos de um deus insaciável que sonha a nossa vida.
De todas as asneiras que forçosamente dizemos quando falamos da morte, a mais perdoável de todas é a suspeita de que a vida é um desenho animado pelo sonho de um deus que nos mata quando desperta.»- Natália Correia
sábado, janeiro 10, 2009
Separador:
extras
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário