sexta-feira, janeiro 02, 2009

O espelho de Adriano

I
(deste lado do espelho)


Enquanto estive vivo persegui quase
todas as espécies de animais com a força
desordeira da barbárie, nunca me
dando conta do quanto os seus pêlos
macios são também dignos de amor.

Bebi dos mais doces líquidos,
dos mais luminosos homens e do seu
cheiro que ao adormecer era como uma
cicatriz que nunca fechava sobre o rosto.

Nenhuma voz habita o corpo daquilo
que vi, agora que o tempo se perde,
até na memória – principalmente na
memória –, como uma espécie de
cântico entoado numa floresta vazia.

Os meus pulmões foram tingidos
de branco pelo ar soprado através
dos lábios do Imperador.
As suas mãos, como o poder
de me tocar a partir de dentro,
acenderam uma lâmpada eterna sobre
este corpo que os deuses, vulgares
vampiros de cinema, consumiram
ainda em estado de crisálida.

O meu rosto foi escuro nos sonhos
do Imperador, contra a brancura
bruta que aos seus olhos se impunha.
As cores, as coxas, os sabores,
quase tudo brotava da fonte queimada
do que antes foi.

II
(do outro lado do espelho)


Não me queiras entre os que regressam
com as suas cores apagadas
e o seu aroma a bibliotecas de outrorá
compiladas por sábios a quem foram
dados nomes proibidos de pronunciar.

Eu não fui feito para habitar
a tua morada em segredo e acariciar-te
a cintura dia após dia, enquanto confiavas
cegamente na minha felicidade escura.
Sou um assassíno instigado pela
memória de um amor que se quis
mais forte que a solidão. Mas já nem chove.
E eu sou também o teu fantasma,
apesar disto só querer dizer que te velo
duma forma exageradamente silenciosa

Aqueles que até perto de mim
têm viajado contam-me que por divino
passa o meu corpo tão desprotegido quanto
Pátroclo ajoelhado perante o seu amado.
Falam de estátuas sobre figuras masculinas
cujo torso musculado faz lembrar um amor-deus
despertando o mais belo insecto do seu sonho.

Mas já não chove e se tenho sobre
os acontecimentos uma memória exacta
o meu corpo estava tão descarnado quanto
o vento e a ausência o puderam deixar.
Tão-pouco entrelaçados os nossos dedos
estavam, eu lembro-me, eras Imperador
e qualquer assunto humano a resolver
te ocupava o tempo, tão distante que
nem através da água bebível pudeste
sentir o cessar repentino da minha respiração.

Sou mais como Ofélia, bem o sabes,
apenas digno duma história em segundo plano,
a meio de um volume que te exalte enquanto
Rei de todos os homens instruídos e cultivados,
a medida de memória exacta para ser recordado
como alguém que teve lábios – e coxas –,
carne disposta a fazer de ti um homem possível.

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