sexta-feira, janeiro 02, 2009

Criatura

Fui sonhado por um fraco, um estúrdio, um homem
que aplicou todas as forças que tinha e escreveu de tudo –
romance, teatro e poesia, diários, crónicas, ensaios
e crítica – tudo, com a maior das dedicações,
todos os dias e noites que teve, entre a lucidez
e o pavor ébrio. Provou as substâncias
mais prometedoras e depois das alegrias,
provocou a dor, o silêncio, a solidão e o desespero.
Deitou-se com mulheres e homens, crianças
também, procurou Deus, a beleza e o amor,
estudou os assuntos sérios e os outros,
coisas deste mundo e do outro. Tentou vender-se
pelo preço mais baixo, mas nunca conheceu
glória ou reconhecimento.
Lentamente definhou, morreu e assim que
lhe enterraram o corpo, o nome que tinha apagou-se
para sempre. De tudo o que fez, fui eu apenas aquilo
que ficou. Entoado como um cântico por um coro
de demónios, fui protegido, suguei leite do peito
de várias mulheres, loucas, mães sem filhos ou grávidas
de terror, puxei por todas elas até secar-lhes a vida.
Fiz a escola sem nunca fazer perguntas, aprendi a ler
e escrever, a ouvir e a dizer o que se esperava que
dissesse. Fui amado por aqueles a quem bebi o sangue,
entrei-lhes nos sonhos, envenenei-lhes os desejos –
chamaram-me todos os nomes, honraram-me
de todas as maneiras, fizeram de mim um anjo.
Quando finalmente Deus se viu obrigado a olhar-me
nos olhos, cuspi neles o último fôlego do meu criador.
E os enormes e belos olhos de Deus, por uma vez,
pestanejaram.

1 comentário:

Artur Corvelo disse...

um dos teus poemas de que mais gostei até agora. está mesmo muito bom